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Samuel Pinheiro Guimarães: Segunda Guerra Fria e a Dominação de Espectro Total

O Grupo de Pesquisas e Estudos Nacionais e Estratégicos - Moniz Bandeira homenageia o diplomata Samuel Pinheiro Guimarães, falecido aos 84 anos no último 29 de janeiro, e por meio deste pública seu prefácio à "Segunda Guerra Fria: Geopolítica e dimensão estratégica dos Estados Unidos (Das rebeliões na Eurásia à África do Norte e ao Oriente Médio)" de seu amigo e parceiro intelectual Moniz Bandeira, publicado em 2013 pela Civilização Brasileira. Samuel Pinheiro Guimarães (1939-2024) foi um combatente intelectual pela dignidade nacional, avesso a mediocridade imperante nas academias dos países dependentes e ao pensamento subserviente da classes dominante do Brasil. Guimarães nos deixou uma extensa contribuição sobre o lugar do Brasil no mundo, no qual se destaca suas obras-primas "Quinhentos Anos de Periferia" (1999) e "Desafios brasileiros na era dos gigantes" (2006) Samuel Pinheiro Guimarães, Presente!



Samuel Pinheiro Guimarães* O professor Luiz Alberto Moniz Bandeira tem-se destacado como o principal pesquisador, analista e historiador da política interna e externa brasileira e da política internacional contemporânea.

Suas obras sobre a política interna brasileira, como Presença dos Estados Unidos no Brasil e O Governo João Goulart; seus estudos latino-americanos, tais como sobre o golpe no Chile e sobre as relações entre Brasil, Argentina e Estados Unidos, e, finalmente, os livros sobre a política internacional, em especial Formação do Império Americano, são indispensável leitura para políticos, acadêmicos, diplomatas, empresários e militares que desejem conhecer a situação em que estamos, por que nela estamos e para onde vamos.

Este novo livro de Moniz Bandeira deslinda as raízes e lança um olhar sobre as perspectivas dos conflitos no Oriente Próximo e na Ásia Central, primeiros embates do que poderia ser uma futura (mas não tão distante e talvez já em curso) disputa pela hegemonia entre os Estados Unidos e a República Popular da China, ou, dito de outra forma, entre o Ocidente capitalista desenvolvido (porém estagnado) e o Oriente capitalista dinâmico, mas ainda subdesenvolvido. As origens remotas desses conflitos e de suas complexas contradições e jogo de interesses devem ser procuradas tão longe quanto em 1945, após a Segunda Guerra Mundial e no mundo que dela surgiu.

A Organização das Nações Unidas, uma criatura dos Estados Unidos, foi aceita pela União Soviética, que viu nela uma proteção contra os espíritos capitalistas mais agressivos, como Winston Churchill; pela Grã-Bretanha, endividada, política e economicamente, com os Estados Unidos; pela França, que triste figura fizera durante a Guerra; e pela então irrelevante China.

A Carta das Nações Unidas, aprovada na Conferência de São Francisco por 51 Estados, a maior parte deles fracos e desejosos de preservar sua soberania, estabeleceu como princípios da ordem internacional que pretendia criar que seriam e continuam a ser necessários para manter a paz internacional a não intervenção, a autodeterminação e o respeito às fronteiras.

Esses princípios são diametralmente contrários a qualquer política de mudança de regime (regime change), de derrubada de governos ou de intervenção militar, principalmente em temas da organização política e econômica interna dos países. Essa era, de certa forma, uma condição para que os países menores aceitassem o condomínio das Grandes Potências no Conselho de Segurança, e seu direito, quando unânimes, de utilizar a força em casos de ruptura da paz.

No entanto, desde o pós-guerra e da definição da União Soviética como seu inimigo principal, os Estados Unidos desenvolveram uma política, de um lado, de organização do sistema internacional à sua imagem e semelhança e, de outro, de regime change, cujo alvo principal seriam os regimes socialistas, em que o confronto era mais difícil devido à presença soviética, assim como outros Estados de sua própria esfera de influência cujos regimes fossem julgados inconvenientes aos interesses americanos. Assim, assistimos à onda de golpes militares na América Latina, instalando ditaduras ferozes que, mais tarde, ao se tornarem inconvenientes, foram renegadas pela política de direitos humanos e pelo apoio americano às organizações que as combatiam. Nesse período, que vai até o governo Reagan, foram até certo ponto poupados não somente aqueles que se alinharam incondicionalmente com os Estados Unidos, mas mesmo alguns países que, de forma mais ou menos firme, se opuseram às políticas econômicas e militares norte-americanas.

Vitoriosa essa longa etapa da política de regime change com a desintegração da União Soviética e sua adesão ao capitalismo, com as revoluções (contrarrevoluções) nos Estados socialistas da Europa Oriental e com a adesão, parcial e gradual, da República Popular da China ao sistema econômico capitalista, mas não ao neoliberalismo, a atenção dos Estados Unidos se voltou para outros países através de uma ativação ou reativação de mecanismos de pressão política e econômica, tais como as condições exigidas para a renegociação de suas dívidas externas, as retaliações unilaterais da Trade Law, as intervenções militares pontuais e a influência crescente na política interna dos países da periferia de seus aliados nativos, fascinados pelo pensamento único neoliberal e submissos à Nova Ordem Mundial, proclamada por George Bush. A região onde se desenvolve hoje de forma sofisticada e intensa, utilizando desde a mais ampla manipulação da mídia em nível mundial até a infiltração de forças especiais e o fornecimento de armas modernas e poderosas, a política de (economic and political) regime change é aquela que vai do Magreb à Ásia Central e onde se encontram os países árabes e muçulmanos.

Para compreender os eventos que se desenrolaram e continuam a se desenrolar com grande comoção nos países e sociedades do Magreb, do Oriente Próximo e Médio e da Ásia Central é interessante começar por uma reflexão sobre os objetivos estratégicos permanentes da política externa dos Estados Unidos e sobre os instrumentos de ação da Potência Imperial.

A política externa americana determina em grande medida a agenda internacional, cria e influencia eventos em todos os quadrantes do globo e, portanto, esteve e está presente nos acontecimentos políticos e econômicos do mundo árabe e muçulmano, a partir em especial da Segunda Guerra Mundial e da criação do Estado de Israel e agora na Primavera Árabe.

Nenhum outro Estado tem o mesmo poder e a mesma influência internacional que têm os Estados Unidos, ainda que alguns Estados, devido à sua dimensão e força, possam participar da política internacional, ao passo que a maior parte se limita a reagir às iniciativas e ações da política americana. Os Estados Unidos têm um projeto nacional e internacional declarado e explicitamente hegemônico, hoje sintetizado na frase full spectrum dominance (dominação de espectro total), isto é, seu objetivo é estabelecer e manter a hegemonia americana, sob o manto ideológico da defesa de valores universais que, aliás, seguem apenas na medida de sua conveniência, como comprovam a prática dos assassinatos seletivos, a utilização de drones e a escuta ilegal de todos os meios de comunicação, no programa Prism, em todos os países. Na execução desse projeto imperial, podem existir momentos, períodos e circunstâncias de cooperação, de acomodação, de tensão, de subversão, de confronto mais ou menos agudo, de conflito armado entre os Estados Unidos e outros Estados. Porém, não importa o momento, o período, a circunstância ou o tema em jogo, o importante é sempre levar em conta, compreender, que os Estados Unidos em todas as suas ações procuram sempre manter, preservar ou estabelecer sua hegemonia, direito que parecem considerar semelhante ao que Jeová concedeu ao povo judeu. Os principais objetivos estratégicos dos Estados Unidos são: • manter sua hegemonia militar em todas as regiões do globo, por meio da presença de forças terrestres, navais e aéreas capazes de desestimular ou impedir a emergência de Estados rivais militares capazes de se opor ou até mesmo de apenas dissuadir os Estados Unidos de fazerem uso da força; neste objetivo se inclui o de desarmar os Estados periféricos por meio de acordos de todo tipo, sob o manto ideológico de redução das tensões e de promoção da segurança e da paz internacionais; são 750 bases militares no exterior, 1,4 milhão de soldados, sendo 350.000 estacionados em 130 países; • manter sua hegemonia sobre os sistemas de comunicação e de informação (isto é, sobre a elaboração e a difusão de conteúdo pelos meios de comunicação, quais sejam as agências de notícias, o cinema, o rádio, a televisão e agora a internet) que formam o imaginário das diferentes elites dos distintos Estados e sociedades, em especial no que diz respeito à formação das imagens sobre os eventos internacionais (aí incluídas as operações de guerra psicológica), sobre os valores superiores da sociedade americana e sobre os objetivos altruístas de sua política externa; • manter sua hegemonia nos organismos econômicos internacionais (comerciais e financeiros), tais como a Organização Mundial do Comércio e o Fundo Monetário Internacional, já que são eles que elaboram as normas internacionais que regulam as relações entre os Estados e as impõem por meio dos programas de ajuda para enfrentar dificuldades de balanço de pagamentos e do financiamento de investimentos; • manter sua hegemonia sobre o acesso a recursos naturais no território de terceiros países, em especial ex-colônias, assim como sua hegemonia e seu controle sobre as vias de acesso a esses recursos, essenciais ao funcionamento da economia americana, assim como das economias capitalistas altamente desenvolvidas, nas quais se encontram mega empresas multinacionais americanas e que são os principais mercados para as exportações americanas e fontes de remessas de lucros para suas matrizes nos Estados Unidos; • manter sua hegemonia política através do controle, tanto quanto possível, do Conselho de Segurança das Nações Unidas, único organismo internacional que autoriza a aplicação de sanções e o uso da força militar contra qualquer Estado, menos contra os membros permanentes, com a estreita cooperação das potências capitalistas ocidentais, isto é, Inglaterra e França, reservando-se o direito de agir unilateralmente sempre que os interesses dos Estados Unidos assim o exigirem, como declarado explicitamente pelo presidente Obama e por seus antecessores; • manter a vanguarda americana no desenvolvimento científico e tecnológico em termos de aplicações civis e militares, condição para sua hegemonia em outras áreas; • manter abertos os mercados de todos os países para seus capitais e para suas exportações de bens e serviços e, para esse fim, consolidar, por meio de negociações, normas multilaterais (como na OMC) e bilaterais (como nos tratados de livre comércio) que garantam essa abertura. É à luz de alguns desses objetivos que se torna possível entender os acontecimentos da Primavera Árabe e seus antecedentes e a evolução política nos países árabes e muçulmanos tão bem descritos, documentados e analisados por Luiz Alberto Moniz Bandeira em seu livro. A evolução política, econômica e militar desses primeiros embates mencionados entre China, Estados Unidos e Rússia, apresentados pela mídia, ligeira e superficial, orientada, consciente ou inconscientemente, pelos interesses estratégicos americanos, como uma revolta espontânea das massas “democráticas” dos países árabes/muçulmanos contra os regimes ditatoriais antiocidentais e antiamericanos desses países envolve complexos aspectos geopolíticos (aí incluídos os sociais e os militares) e geoeconômicos, profundamente entrelaçados, que agem e interagem.

Moniz Bandeira analisa, com base em material oriundo das mais diversas fontes oficiais, de estudos acadêmicos e da mídia dos diferentes países, a evolução desses conflitos e considera, em síntese, que estaria em seus momentos iniciais a Segunda Guerra Fria, decorrente da evolução da política americana, que descreveu com tanta maestria na Formação do Império Americano, um dos raros livros de autor brasileiro sobre política internacional. O principal aspecto geoeconômico desses embates é a luta pelo controle da ampla área produtora de petróleo e gás que inclui os países da bacia do Mediterrâneo, os Estados do Golfo Pérsico, o Irã e o Iraque, e as novas repúblicas muçulmanas da Ásia Central, desmembradas da antiga União Soviética.

A produção de gás e de petróleo dos países do Magreb e do Golfo é de fundamental importância para os países da Europa Ocidental, em especial para a França e a Itália, mas também para o Japão e a China.

Os Estados da Ásia Central, ex-repúblicas soviéticas, são detentores de enormes reservas de gás e de petróleo no Mar Cáspio, e o controle e o acesso a essas reservas são de importância estratégica para a Rússia, como grande produtora e exportadora, e para a China, como compradora, diante da permanente volatilidade política do Oriente Próximo e da influência ocidental, em especial americana, naqueles países.

A região do Magreb, do Oriente Próximo e do Golfo Pérsico esteve sob a influência direta e avassaladora das grandes companhias de petróleo, influência que foi gradualmente afetada pela ascensão de regimes laicos e por seus esforços de se apropriar de parcelas crescentes da renda do petróleo por meio da constituição de empresas estatais e de controle da produção e do preço do petróleo através da OPEP, sendo interessante lembrar que um dos primeiros países a renegociar as condições de produção e o preço do petróleo foi a Líbia, após a tomada do poder por Muammar Gaddafi. A situação no Oriente Próximo se complicaria gradativamente com a presença de Israel, com a expulsão dos palestinos, com as guerras com os países árabes, com o permanente apoio econômico e militar americano, com a política agressiva de conquista territorial executada por Israel, contrariando todas as decisões do Conselho de Segurança, conjunto de circunstâncias que levou ao choque do petróleo em 1973, com a multiplicação de seu preço por quatro, causando profundo abalo nas economias americana e europeia e em todos os países importadores de petróleo, desenvolvidos ou não, tais como o Brasil. Assim, ficava claro que o Oriente Próximo, distante e exótico, podia ter e tem grande importância para nós e que tratar desses temas e deles participar não é, ao contrário do que pensa a mídia, improdutivo e irrelevante.

Os choques do petróleo teriam enormes consequências geopolíticas, estimulando a busca por novas fontes de energia (como foi o caso da energia nuclear na França) e de novos fornecedores, como a União Soviética para a Europa Ocidental, por meio da construção de um longo gasoduto, apesar das vigorosas objeções e ameaças do presidente Ronald Reagan. A revolução iraniana levara à derrubada do xá Reza Pahlavi e de seu regime corrupto, antipopular, antinacional, violento e luxuoso, à tomada do poder por religiosos xiitas, ao segundo choque do petróleo aos Estados Unidos, ao fortalecimento dos laços econômicos do Irã com a Rússia e com a China e a um permanente confronto dos Estados Unidos com o Irã, este último acusado de integrar o Eixo do Mal e o primeiro de ser o Grande Satã. Os episódios da ocupação da embaixada americana, da manutenção dos reféns por um ano e da reconstituição dos arquivos secretos americanos (e a revelação do nome de seus agentes) seriam considerados quase crimes de lesa majestade e iriam marcar o início de uma longa confrontação, com efeitos sobre o conflito palestino e a política na região, inclusive na crise na Síria.

Aspectos recentes do ponto de vista geoeconômico (mas também geopolítico) foram a crescente atividade e presença da China na região como nova cliente do petróleo, em especial da Líbia, onde chegaram a estar presentes 20.000 chineses, a disputa pelos recursos do Mar Cáspio e a luta pela construção de gasodutos que liguem a Ásia Central ao Mediterrâneo.

A questão geopolítica central, em si mesma e porque determina as demais, no Oriente Próximo, no Magreb e no Oriente Médio e talvez até mesmo na Ásia Central, é a política de Israel, e sua caudatária/cúmplice, qual seja a política americana em relação ao conflito árabe-israelense, já que esta última suporta, financeira e militarmente, a política sionista.

A histórica, firme e permanente cooperação econômica, militar e política entre Estados Unidos e Israel (principalmente dos Estados Unidos para com Israel) diante dos países árabes e das populações palestinas, dentro e fora dos territórios ilegalmente ocupados, está de certa forma subjacente à revolta dos movimentos fundamentalistas contra os regimes laicos nos países árabes, considerados alienados, cultural e religiosamente, e submissos aos Estados Unidos.

Os Estados árabes laicos procuraram modernizar (em realidade, ocidentalizar, com valores muitas vezes cristãos e, portanto, infiéis) suas sociedades em situações em que existem numerosas e antagônicas seitas religiosas muçulmanas, que se encontravam muitas vezes dominadas por minorias, tais como os alawitas na Síria e os sunitas no Iraque. Esses regimes laicos, diante do insucesso das políticas de modernização econômica e de sua incapacidade de se opor militar e politicamente a Israel, passaram a ser alvo de organizações religiosas fundamentalistas, que não surgiram nem por acaso nem em consequência de movimentos autóctones e espontâneos em cada uma dessas sociedades, como Moniz Bandeira demonstra de forma ampla e documentada. Muitos desses regimes laicos muçulmanos se colocaram no passado em oposição aos Estados Unidos em sua política israelense e muitas vezes se chocaram com os interesses americanos de forma mais geral, sendo que a Líbia se destacou durante anos em sua posição antagônica e militante, até o momento em que decidiu atender as exigências e reivindicações americanas quanto às indenizações às vítimas dos atentados a aviões e à renúncia ao desenvolvimento de armas de destruição em massa.

De outro lado, os Estados teocráticos árabes do Golfo Pérsico, criaturas do colonialismo britânico, tais como a Arábia Saudita e os microestados grandes produtores de petróleo e compradores de armas, sempre tiveram uma política de cooperação com os Estados Unidos, inclusive na luta contra os Estados laicos e em relação a Israel.

Assim, é um complexo mosaico e tabuleiro de interesses econômicos, políticos, militares e religiosos na região do Mediterrâneo onde o cristianismo se defronta com o Islã e onde as Cruzadas são ainda lembradas.

Importante contribuição da obra de Moniz Bandeira é a revelação documentada de que as revoltas da Primavera Árabe não foram nem espontâneas e ainda muito menos democráticas, mas que nelas tiveram papel fundamental os Estados Unidos, na promoção da agitação e da subversão, por meio do envio de armas e de pessoal, direta ou indiretamente, através do Qatar e da Arábia Saudita.

Sua estratégia de ação começa com a formação de forças especiais para intervenção encoberta, com o treinamento de agentes provocadores infiltrados que organizam manifestações pacíficas, com base nas instruções do manual do professor Gene Sharp Da Ditadura à Democracia, que foi traduzido para 24 idiomas e distribuído pela CIA e pelas fundações e ONGs, que levam à reação dos governos, que são acusados de excessos na repressão dessas manifestações e de violação dos direitos humanos de sua população, o que passa a justificar a rebelião armada, financiada e equipada do exterior e, eventualmente, a intervenção humanitária.

O mundo ocidental, as grandes empresas multinacionais, os governos coniventes e cúmplices nessas amplas operações de intervenção para mudança de governo (regime change) serão, todavia, ao final e ao cabo, surpreendidos pela emergência de regimes fundamentalistas muçulmanos não dóceis a seus interesses, em especial pelo seu firme objetivo de implantar regimes e sociedades teocráticas fundados na Shari’ah, na lei religiosa.

A descoberta e a aplicação de tecnologias eficientes para a exploração das enormes reservas de xisto betuminoso (shale gas) nos Estados Unidos, que permitem que o gás americano chegue à Europa a um preço inferior a 30% dos preços atuais, fará com que a indústria americana recupere sua competitividade e reduzirá a importância geoeconômica do Oriente Próximo (e de Israel) para os Estados Unidos, mas não reduzirá sua importância do ponto de vista militar e econômico mais amplo, como parte essencial da estratégia americana de confronto com a Rússia e com a China.

Há uma lição a tirar para os países da América do Sul que procuram um caminho de autonomia em relação ao Império Americano.

As informações recolhidas e analisadas por Moniz Bandeira revelam a atuação orquestrada de grandes potências, de ONGs, da mídia, de fundações privadas e públicas para financiar a mudança de governo nos países que consideram relevantes e sua determinação de usar as técnicas mais atentatórias dos direitos humanos tais como kill/capture, i.e., matar e depois capturar o corpo, o uso da tortura, os assassinatos seletivos e o uso de drones, aviões sem piloto, e agora o controle global das informações, que prenunciam as batalhas futuras automatizadas e eletrônicas contra as províncias rebeldes que buscarem sua independência em relação à metrópole imperial.

O livro de Moniz Bandeira tem importância para a política interna e externa brasileira na medida em que revela os obstáculos que podem surgir para a formação de um bloco sul-americano e para nossa razoável pretensão de virmos a ser uma potência à altura das dimensões de nosso território, de nossa população e de nossos recursos naturais, do solo, dos minérios à água e à biodiversidade, e que revela a capacidade de subversão política por meio da manipulação da mídia internacional e, em consequência, da opinião pública, inclusive de esquerda.

Todavia, enquanto o Brasil não procurar controlar as megaempresas multinacionais em seu território para levá-las a cooperar com seu desenvolvimento tecnológico e torná-lo autônomo; enquanto não procurar ter competência militar para se defender e dissuadir; enquanto não decidir democratizar a mídia, instrumento de poder, democratizando a opinião; enquanto não procurar deter a sangria de divisas promovida pelos capitais especulativos; enquanto se conformar com as estruturas de propriedade da terra; enquanto não procurar transformar seu sistema tributário para que os ricos paguem mais e os pobres menos; enquanto limitar suas ambições de desenvolvimento, ficaremos a salvo, e aplaudidos. A salvo, subjugados, satisfeitos e conformados em nossa condição de grande Estado periférico.

Assim nos ensina Moniz Bandeira.


Nota: * O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães foi secretário-geral do Ministério de Relações Exteriores do Brasil (2003-2009), ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE) (2009-2010) e alto-representante geral do Mercosul (2011-2012). É professor do Instituto Rio Branco e autor dos livros Quinhentos anos de periferia (UFRGS/Contraponto, 1999) e Desafios brasileiros na era dos gigantes (Contraponto, 2006), livro este que lhe valeu ser eleito, pela União Brasileira de Escritores (UBE), Intelectual do Ano 2006 e receber o Troféu Juca Pato.

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