O futuro ‘do que fomos’ sob os arames da ilusão desenvolvimentista*
- grupomonizbandeira
- 4 de abr. de 2023
- 27 min de leitura
Por André Queiroz

para Renato Vallone
1
Esse que corre é Manuel, o vaqueiro de Glauber Rocha. Traz consigo a sua Rosa num enganchado de mãos que não tardarão a se desvencilhar; escorregadias, ossudas, maceradas, calosas. Estão soltos e sozinhos, um nada à frente, mais nada às costas – e seguem os dois, em desprega, como se escapassem de forquilhas arcaicas antiquíssimas, tomados em pavor, lançados à vertigem da planura árida e mordaz. Atrás de si, o alarido da morte que atende por tantos nomes: Sebastião, Corisco, Dadá, Antônio, Virgulino, Cangaço, Maria, Canudos, Conselheiro, Pedra Bonita, Monte Santo, todos mortos, ressequidos, gastos, dormindo profundamente. Era o tempo. Agora, não mais.
Manuel deve ter um par de hélices às pernas rotas, ele é lépido, descompassado, afoito, tardio, Manuel tem a pressa dos que tem fome – dos que não podem reservar para o amanhã as urgências do agora, o estômago pesando numa dor que grita alto, estapafúrdia, como num estrondo de bumbo que faz ecoar no vazio do entorno a compressão de suas paredes ácidas, perfuradas, ulceradas. Manuel, este que corre, ele tem os cabelos empapados em oleosidade e suor, cabelos que se lhe pregam à cara como se fora uma máscara para as horas aziagas. Por vezes, Manuel veste a máscara de Satanás – como quando se lhe rebatizou Corisco em seu ingresso no cangaço; Noutras, a de jagunço com arma de fogo pendurada como se fora um embornal – como quando o beato Sebastião o acoitou entre os seus seguidores; Manuel ele oscila de uma crença a outra, ele experimenta em si todos os nomes que lhe vistam como a um terçado; for o caso a vanguarda do front de batalha estará Manuel aceso, sentinela de fé cega em faca amolada, ele perfurará as carnes duras dos opressores, os fazendeiros, os coronéis, ele os destripará numa coreografia de punhal, a peixeira ingressando de baixo aos cimos, o punho firmíssimo ao cabo num fazer girar, num fazer subir, num fazer arrancar o imenso e inútil latifúndio de entre o ordenamento torpe dos órgãos; for o caso a fronteira do sertão, Manuel será o ingresso e a guarda, ele será puro olhos de vigia num rastejar de entre os arbustos, num esticar de mirada a ver se detrás dos montes, lá onde a planura finda em curva, se lhes arma o contra-ataque da República, o governo dos proprietários a chegar em bandos, em tropa, em fila de formação militar, uma volante, um destacamento, e Manuel será o anúncio, a voz que se derrama num aboio que remaneja a retaguarda para outros sertões, outras veredas, outros senderos de uma Seara Vermelha, mas qual, onde que ali, se agora tudo é ocaso?
Era o tempo, fizera-se o tempo das lideranças, aprumara-se a vanguarda na leitura dos processos, bem se ordenara os prumos a tais rotas, curtira-se as etapas em pele dura, em cama de prego, varando as noites às empreitadas, os companheiros dispostos, a devoção abnegada dos companheiros, a solidariedade camarada, a cartilha dos quefazeres seguida à risca como que a uma disciplina que se saca das ervas do chão e se as conduz num para adiante, num desde agora até que sempre – tomando a história às crinas da luta de classes, aprofundando a análise concreta dos fatos até que se lhes sacasse a orientação teórica, a linha política, o programa de ação? Houve isto, Manuel? Estava-se a este ponto quando a casa o mundo fora caindo como que a uma tapera de palha seca? Estava-se à orientação dos sentidos àquela luta de vida e morte? Ou estivera Manuel aos cercos, isolado, frágil, fadado às derrotas que se assomam, um Manuel condenado, Corisco a lhe dizer que tomasse a si a companheira Rosa, e a levasse, e seguisse com ela para outras terras que ali já não estava a paragem, que a guerra ali era infausta, perdida, fraturada, seja pela traição de alguns, seja pelo atraso, pela dispersão, pelo desordenado dos espontaneísmos, ou pela covardia de outros tantos, ou pelos equívocos de monta em táticas que não eram propícias à gravidade daqueles rincões. Corisco dirá do Beato Sebastião, e do seu povo de fanáticos, e de seu rosário bastardo onde deveria ser o rifle a condição do estribilho. Aqui é Corisco a dizer: Homem nessa terra só tem validade quando pega nas armas pra mudar o destino, não é no rosário, é no rifle e no punhal”, e Manuel ouvirá profundo, e Manuel seguirá, ele encarna em si o degredo e seu anúncio, será ele o menestrel de fole mouco e engasgado, solito sozinho, ele corre com Rosa desta solidão do final do mundo, dessa ausência de alternativas, do esvaziado das trincheiras, ele e ela correm, Manuel e Rosa seguem. Para onde Manuel? – nos perguntamos, para onde é que ele, Manuel, conduz a sua Rosa?

Manuel tem olhos que saltam das cavidades do rosto, olhos que trepidam, que fazem tremer as imagens. Talvez as antecipe, como a se desviar da destinação a que estivera, até então, enclausurado. Ou como se fosse de um retardo a estupefação, e Manuel se pusesse a correr e a correr, a dar voltas, numa gira louca, ao tempo revirado. Apagar as horas, apagar as engrenagens, não lembrar, não lembrar, e seguir à frente, Manuel correndo e correndo, Rosa lhe seguindo o rumo, companheira. Nada lhes serve de bússola ou salvaguarda. Nem mesmo a altura do sol nas horas do dia que tarda. Nada neles se alarga e se presta à sazonalidade das estações. A terra é seca, sem promessa, nem prestação. A fome é diuturna – como se a devorar por dentro os órgãos vazios e murchos. Dissemos que é daí a urgência de Manuel, e a de Rosa, e a da multidão de fiéis nos andares do messianismo de Sebastião, o beato. É da pressa o de que se trata, é ela que aos feitios da fome humilhada, fome que soterra as gentes, que as paralisa e as cega, mas que, a um só tempo, as faz andar e atravessar os quentes do deserto e a rechaçar o trabalho nas terras do latifúndio; fome que as faz romper com a guarda dos capatazes, com as contas em aberto na servidão do armazém, fome que as faz enrolar a língua num salto brusco até o susto dos soldados amarelos, as vidas secas de Fabiano e Sinhá Vitória e a cadela baleia em caça de preás e mucuras, é a fome, é a pressa, é a presa, é a urgência urgentíssima que as torna refém da falácia, da promessa, da fantasia e do tráfico da ilusão. Como nos caminhos de Monte Santo, o beato a balançar as palavras sob os córneos da penitência. Aqui é Sebastião a dizer: Ao sinal de Deus vão descer cem anjos com as espadas de fogo anunciando o dia da partida e abrindo o nosso caminho nas veredas do sertão e o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão. E Manuel precisa ver com seus olhos as alusões do Beato, e Rosa precisa dizer em alto e bom som que não é verdade, que é de mentiras as contas do rosário, que é de fábulas encalacradas que se desfia o véu da salvação. Que já não basta rezar, que rezar já não faz arregimentar em avanço, apenas e tão somente a uma espera vã e servil. Nada que isso, não mais este arremedo, Rosa sabe que já não basta esperar que nada se lhes dará às mãos espalmadas em prece e rendição. O governo dos proprietários lhes fechara os caminhos do sertão. E então será o êxodo da travessia através da caatinga, os camponeses milhares, deixando pelos caminhos os filhos e os velhos que a morte resgatou.
Sob as pressas de um olhar de soslaio, não se lhes percebe a extenuação e o desconsolo. A Manuel e Rosa já não lhes serve qualquer manipanso. Qualquer consolo, qualquer compasso de espera ou resignação, nada lhes presta, nada lhes tem valia. Eles correm aos saltos, eles tropeçam em gravetos rasteiros, eles seguem de brusco, eles continuam a seguir sempre para frente como se vislumbrassem algo, como se lhes acenassem desde fora alguma incerteza desesperada que lhes arremessa em catapulta. Será de um apito de fábricas o de que é composto o seu canto de sereia? Será de um chamamento demiúrgico ao progresso numa cartografia de chão de fábrica, este silvo, este assobio, esta voz de timbre metálico ao deserto? Nada é o que salva. Nenhuma voz, nenhuma palavra que equilibra. Tudo são toadas de prazo curto, todavia Manuel e Rosa serão refém de qualquer ensejo, ou será que não?! Estão exaustos, despovoados de crenças, dispostos a nudez de propósitos – como a se ajustar ao que se lhes chegue. Mas o quê e o tanto? Talvez que um santo como lhe fora Sebastião, o beato, mas não mais lhes tirasse do caminho. Talvez que a Ilha de ouro, o outro lado do monte, o verde da campina, a chuva que povoasse a lavoura de um solo fértil e febril lhes fosse uma voz de nada, uma letra solta envolta em abstrações que já não tem serventia. Talvez que a purificação do sangue no sacrifício dos inocentes, a provação das rochas, a hora avulsa do Ângelus, o arrastar-se de joelhos à educação pelas pedras, mas nada que isso, não mais este aluvio.
É que Manuel e Rosa vêm dos longes – num arrastar de hábitos costurados à seca sobre a pele curtida. No caminho encamparam tarefas diversas e nada o que se lhes deu de ganho. Houve quem dissesse que Rosa e Manuel envergam consigo, à revelia, o dever da memória, a tarefa do testemunho. É que entre o não-mais do agora e ainda-não do porvir, a história foi tomada de assalto pelos balaços que vinham de todas as partes – num precipitar de volantes. Sabe-se lá o que restara de tudo o que se lhes deu. Restara algo? Um filete de água que não a do açude envenenado? Nada, nenhum. Soube-se que Manoel trazia nas costas uma, duas, três, uma carrada de mortes. No princípio de tudo, ele matara um coronel que há tempos lhe devorava o fígado de forma lenta e continuada. Arrastou vaca magra na aridez do sertão. Seguira a turba dos beatos, se lhes fizera de braço forte, jagunço a prova de balas, escudo em defesa do santo. Manuel fora tantos. Fora cangaceiro sob às provas de bravura que se lhe impôs, mas o cangaço acabou. O beato morreu. O povo de Monte Santo sucumbira à bala dos macacos, do dragão da maldade, do sicário da República a serviço do latifúndio exportador. Se Manuel e Rosa tomassem de um atalho, em recuo, o que lhes teria sobrado do roçado de nunca? Um fatiado severino até a morte anunciada, morte matada, morte sob encomenda, morte miúda e ordinária? Nada, nenhuma a saída ao revés do tempo que escorre. Lá atrás tudo é dos fazendeiros que tem um Estado a lhes espelhar o mando, a lhes subsidiar os recursos de bala e aprisionamento, a lhes guarnecer do punhado de leis e de contratos, e de fiscais, e de corredores de uma burocracia na qual se perderia um qualquer Manuel, uma Rosa qualquer.
Mas Manuel e Rosa guardam consigo um achado para uso diário: é que de acúmulo em acúmulo, eles sabem que só tem de seu o corpo que, agora, corre no deserto. Manuel e Rosa seguem, correm, se jogam, se lançam num para frente que não cabe na tela, que não cabe no filme de Glauber Rocha, e que nos faz interpelá-los ainda hoje: Manuel, Rosa, para onde, para onde?
2
Esse que parece caminhar em nossa direção é Carlos, o gerente de uma fábrica de autopeças no filme de Luiz Sérgio Person. Nas suas costas, em profundidade de campo, a cidade de São Paulo, chacoalhada de temporalidades várias, exibindo-se, impávida, de entre a insistência/incidência dos resíduos de um tempo remoto, a locomotiva do desenvolvimento – a nos acenar ‘ao futuro do que fomos’. Futuro do passado, de um pretérito que não se descolara de todo, que se exibia como espectro e anfitrião no baile de máscaras, no salão de festas e recepções e contratos de alta monta. Como a um joguete de infantes, esta gangorra que sobe e desce em conformidade, ao sabor dos ventos, dos preços, das cotações, das variações cambiais, das mediações entre parceragens de classe. Seria de um comboio em descarrilho, o de que ela sugere e supõe, uma São Paulo Sociedade Anônima?

É que, a princípio, a máquina que acelerara o tempo se conformara em arranjos de uma complementaridade contraditória na que a reacionária aristocracia agroexportadora não fora suplantada de todo, como que pelos levantes sangrentos de uma revolução burguesa que a enterrasse em seus propósitos e perspectivas, em seu modus operandi e regime de concentração fundiária, lhe fazendo escapar das mãos o poder e o regime político-econômico. Aqui não se dera a este modo, a estas bandas dos trópicos de nossa nação latino-americana, em Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México, Uruguai, aqui não se dera desta forma. É que a afamada e retrógrada aristocracia compartirá como sócia contumaz da burguesia industrial em seu voo curto de andorinha capenga, voo que pensava flanar na direção de um nacionalismo autônomo que (nos) emancipasse da voracidade dos capitais imperialistas provenientes dos países centrais. Todavia fora de curto prazo a empreitada. As peças em contra; os interesses em contra; o axioma de um sistema, que não encaixa sem atrito, não seria razão suficiente para que se tivesse sob suspeição as cartadas lançadas à mesa, este estreito leque de opções? Como se se tratasse de ensejo com hora e data de vencimento, a desempenhar os passos de um tango-bolero no que as pernas (que temos) se engancham mais e mais no que se avança à expertise do bailado. E então, se se acabasse por padecer da aprendizagem ótima da dança. Como se os pressupostos da bela performance ao salão fosse o que dificultasse sobremaneira o respiro em pulmão próprio, ou a sofrer da drenagem dos ares novos que pudessem vir a subverter os códigos de conduta sistêmica. Demasiado tardio, e de forma equívoca, autofágica, a um ingresso não subalternizado no sistema capitalista mundial – seria a esta condição que estávamos àquele futuro do que fomos? Noutros termos, padecia-se do aprofundamento a um sistema que não oferecia saídas ou subterfúgios que não o do alargar de nossa dependência e subdesenvolvimento.
Mas onde que Carlos a isto? Ele que lera a cartilha corretíssima da formação – seguira seus passos, seu abc profissionalizante. Talvez que Carlos tenha entregue horas de sua vida às tarefas de aprendizagem sacadas a baixo preço nos cursos noturnos do SENAI. Ele que estivera a agregar valor à sua força de trabalho nas aulas do inglês comercial do cursinho de línguas – um entre os tantos que cresceram e se multiplicaram pela metrópole. Ele que sabia de cor e salteado a pronúncia e a grafia das palavras repetidas à exaustão: learn, remember, forget, forgot, fine, teach, toach, learn, remember, forget, forgot, fine, found, lose, lost, send, sent, receive, good. Carlos é aplicado, parece saber (será?) que o futuro está em suas mãos, que é preciso que ele contenha a lascívia – que ele esqueça Ana, que ele case com a moça prendada, Luciana, que ele leve às últimas consequências os conselhos dos bons amigos – Arturo é um dentre estes; futuro compadre, italiano das primeiras décadas do século, filho de anarquista, crescera ouvindo um brado que não lhe cabe mais no corpo de adulto e que não se lhe ajeita ao pragmatismo de sua alma moderna; Arturo tomara outro rumo, será dono da empresa de autopeças Carracci S/A, 3.500 m2 de área, a dois passos da Volkswagen, da Willys, da Mercedez, com o Banco do Brasil financiando e as boas amizades, porque não é necessário ter dinheiro, é necessário ter crédito e para isto deve servir as boas amizades, diz Arturo – e Carlos se fará gerente da Carracci Sociedade Anônima, gerente de Arturo, e mais tarde quem o saberia dizer, se um de seus acionários, sócio menor, mas sócio, quase dono, quase, é que Carlos é o mais leal dos funcionários de Arturo, Carlos é aquele que orienta aos operários sem carteira, sem direitos, hiper explorados, moradores dos confins onde Judas perdeu as botas, a se esconder aos montes nos banheiros da fábrica, no almoxarifado, no sótão chamuscado pelo alto forno e fuligem; Carlos ouvira bons conselhos, amadurecera nas terras da garoa vendo a Arturo, o novo rico (ou quase que isso!); Arturo a rir de Carlos do seu provincianismo, do seu não compreender e abraçar aos jogos de alcova, os giros às festas do high-society paulistano, a contemporizar sempre e sempre que Carlos lhe diz que trabalha e que trabalha e que continua sem ter dinheiro para manter a sua família e para ordenar as coisas agora que nascera seu filho; Arturo a lhe dizer da necessidade da calma e da pressa, Arturo a lhe dizer que lhe vai chegar a hora, Arturo a lhe anunciar as boas novas para um dia – não mais o dia me que os anjos virão com as espadas de fogo a abrir a aridez do sertão, mas o dia em que a sorte irá florir de dentro da cartola do trabalho e da disciplina da linha de montagem.
Mas onde Carlos, onde que ele a tudo isto? Ele está que já nem pode, ele caminha em meio a cidade na que trafegam Manuel, Rosa, Pedro, Severino, Maria Augusta Maranhão, e os homens de terno e gravata da Faria Lima. Porque Carlos é contemporâneo de outra época – de outro tempo, não mais o dos barões arrastados do café, arrastados num tempo insistido, sob a tutela do Estado burocrático e comprador de safra sobrante e das demandas represadas, não mais é o tempo destes falidos e soterrados quatrocentões quando dos novos rumos ditados pelo imperialismo e a avalancha de ingresso de capitais estrangeiros, monopólicos, a exercer o controle e domínio sobre o processo de industrialização dos países periféricos. Carlos é homem deste tempo. Um tanto por isto a sua descrença nos supostos aportes de Arturo ao desenvolvimento nacional, Carlos equilibra em si uma paleta de cores feita de riso/sarcasmo/descrença/amargor/fastio/desilusão. Traz consigo um mantra para todos os dias: Recomeçar, trabalhar, mil vezes tentar ser um homem, trabalhar com Arturo, esquecer Ana, apagar Luciana, não lembrar senão do trabalho, das 50 obrigações diárias, lembrar somente das muitas chateações diárias no trabalho, lembrar de uma engrenagem e mais outra e mais outra, que uma engrenagem e um eixo devem ser entregues dentro do prazo estabelecido, mil vezes recomeçar, aceitar sempre, aceitar.
Montado em uma estrutura narrativa não linear, no filme de Luiz Sérgio Person as primeiras imagens nos depositam entre arranha-céus num contra plongée – onde o que temos é a vertigem do homem desde a sua mínima condição; atomizada em meio ao concreto e a multidão de passantes. Também somos confrontados com imagens aéreas da cidade, em que o olhar de quem vê (desde cima), enxerga tudo pequeníssimo em meio ao esplendor da selva de pedra. A cidade como personagem é soberba, e se despeja, imperiosa em sua rítmica e arquitetura, sobre os homens, quase autômatos, espécies de figurantes condenados a repetir um enredo que se lhes cai às mãos todos os dias, e nada que eles podem senão a repetição contínua de recomeçar e aceitar – tal como nos conta o mantra de Carlos.

Outro bloco de imagens acena com as massas trabalhadoras às plataformas, às filas dos ônibus urbanos superlotados – lugares estes de passagem, do ir e vir maquinal e comezinho, consumido aos silêncios dos indivíduos. Muitos, inúmeros, mas cerceados a esta condição que lhes apequena e paralisa. Ainda que estejam em movimento contínuo, é da permanência o de que se trata. Da impossibilidade do desmonte enquanto o que lhes restar for o consolo do estatuto de conformação burguesa – o ir e vir, como direito de mobilidade, da casa ao trabalho, e do trabalho à casa. Nunca aos sindicatos e associações – ainda que estes estejam encalacrados, muitos deles, à centralidade da burocracia do Estado e ao peleguismo estruturante de suas direções.
No mais, a este blocado das imagens que inauguram o filme, restará a periferia, sórdida, suja, devastada e destruída, lugar onde construção e ruína se equivalem em rima e conformação. É que a estes (àqueles) tempos da avalancha de ingresso do capital monopólico sob o formato da expansão das empresas multinacionais, a burguesia nacional padeceu de sua rendição aos novos alinhamentos diretivos do desenvolvimento. Desenvolvimento voltado para fora, para o exterior – e de diversas formas isto. Seja através da expansão de plantas fabris locais sob tutela rigorosa de matriz estrangeira. Que controlará as novas tecnologias, através de uma legislação que lhes garanta a propriedade intelectual sob o formato de patentes. Que direcionará o norte de investimento estratégico no campo da pesquisa e produção em conformidade aos interesses dos países-sede das empresas. Que lhes fornecerá meios, estrutura, logística, através de “convênios firmados, seja com capital privado ou do Estado, para a exploração e abertura de novos setores e ramos” de atuação. Que lhes viabilizará incentivos de toda espécie – tais como subsídios, isenções fiscais, liberdade quase que irrestrita às remessas de lucro – que outro não é do que o saqueio da riqueza nacional forjada pela aliança de classes em um pacto fundado sob os preceitos da divisão internacional do trabalho. Que lhes garantirá através das instituições da República, seu peso opressivo, seu tacão de ferro na garantia de que o custo da produção será o mais em conta possível (e impossível) aos interesses dos ‘investidores’ – e isto sob o garante da hostilíssima condição de miséria e semiescravidão legitimada pela oficialidade das políticas de emprego e da instituição do salário-mínimo.
Mas como que Carlos a isto? Será que ele repete a Manuel e Rosa no que resolve se lançar em fuga ao final do filme? Carlos é hábil, mas o quanto que isto? Ele que trabalhara como gerente em uma empresa de autopeças, bem deve saber o como se faz para fazer funcionar um carro em ligação direta, e ele o faz, ele liga os fios, ele dará a partida, ele segue, segue para fora da cidade, solito sozinho, sem Luciana, sem Ana, sem companheiro, sem Rosa, sem Arturo, sem Corisco que já não há, sem a memória de um coronel que ele não tivera que matar, ele segue neste carro tomado de empréstimo, ele segue para fora da cidade, Carlos sobe a serra, dobra e vence as curvas acentuadas que levam ao cimo, ao belvedere – lá onde a cidade é uma imagem distante, opaca, amalgamada. Talvez que nos valesse voltar a Carlos a mesma pergunta que fizemos a Manuel e a Rosa – inquerir a ele o para onde de sua fuga, o para onde ele se destina. Mas qual, e para quê? Carlos traz consigo uma gordura, um calo que o prende a tudo aquilo, um calo um cancro um nó um nódulo. Talvez porque saiba que sozinho ele não irá muito longe. Talvez porque à diferença de Manuel e Rosa, a cidade tenha olhos espalhados em todos os cantos de aduana e de delação. Talvez por tudo isto, Carlos não traga consigo a obstinação errática de Manuel e Rosa, ou talvez que seja por outras razões que nos escapam. Questões muito próprias e pessoais que não nos teria valia senão a de elencá-las como um dos estigmas e distintivos que a modernidade urbana lhe (nos) amoldou – a condição do indivíduo solto solito sozinho.Outro bloco de imagens acena com as massas trabalhadoras às plataformas, às filas dos ônibus urbanos superlotados – lugares estes de passagem, do ir e vir maquinal e comezinho, consumido aos silêncios dos indivíduos. Muitos, inúmeros, mas cerceados a esta condição que lhes apequena e paralisa. Ainda que estejam em movimento contínuo, é da permanência o de que se trata. Da impossibilidade do desmonte enquanto o que lhes restar for o consolo do estatuto de conformação burguesa – o ir e vir, como direito de mobilidade, da casa ao trabalho, e do trabalho à casa. Nunca aos sindicatos e associações – ainda que estes estejam encalacrados, muitos deles, à centralidade da burocracia do Estado e ao peleguismo estruturante de suas direções.
No mais, a este blocado das imagens que inauguram o filme, restará a periferia, sórdida, suja, devastada e destruída, lugar onde construção e ruína se equivalem em rima e conformação. É que a estes (àqueles) tempos da avalancha de ingresso do capital monopólico sob o formato da expansão das empresas multinacionais, a burguesia nacional padeceu de sua rendição aos novos alinhamentos diretivos do desenvolvimento. Desenvolvimento voltado para fora, para o exterior – e de diversas formas isto. Seja através da expansão de plantas fabris locais sob tutela rigorosa de matriz estrangeira. Que controlará as novas tecnologias, através de uma legislação que lhes garanta a propriedade intelectual sob o formato de patentes. Que direcionará o norte de investimento estratégico no campo da pesquisa e produção em conformidade aos interesses dos países-sede das empresas. Que lhes fornecerá meios, estrutura, logística, através de “convênios firmados, seja com capital privado ou do Estado, para a exploração e abertura de novos setores e ramos” de atuação. Que lhes viabilizará incentivos de toda espécie – tais como subsídios, isenções fiscais, liberdade quase que irrestrita às remessas de lucro – que outro não é do que o saqueio da riqueza nacional forjada pela aliança de classes em um pacto fundado sob os preceitos da divisão internacional do trabalho. Que lhes garantirá através das instituições da República, seu peso opressivo, seu tacão de ferro na garantia de que o custo da produção será o mais em conta possível (e impossível) aos interesses dos ‘investidores’ – e isto sob o garante da hostilíssima condição de miséria e semiescravidão legitimada pela oficialidade das políticas de emprego e da instituição do salário-mínimo.
Mas como que Carlos a isto? Será que ele repete a Manuel e Rosa no que resolve se lançar em fuga ao final do filme? Carlos é hábil, mas o quanto que isto? Ele que trabalhara como gerente em uma empresa de autopeças, bem deve saber o como se faz para fazer funcionar um carro em ligação direta, e ele o faz, ele liga os fios, ele dará a partida, ele segue, segue para fora da cidade, solito sozinho, sem Luciana, sem Ana, sem companheiro, sem Rosa, sem Arturo, sem Corisco que já não há, sem a memória de um coronel que ele não tivera que matar, ele segue neste carro tomado de empréstimo, ele segue para fora da cidade, Carlos sobe a serra, dobra e vence as curvas acentuadas que levam ao cimo, ao belvedere – lá onde a cidade é uma imagem distante, opaca, amalgamada. Talvez que nos valesse voltar a Carlos a mesma pergunta que fizemos a Manuel e a Rosa – inquerir a ele o para onde de sua fuga, o para onde ele se destina. Mas qual, e para quê? Carlos traz consigo uma gordura, um calo que o prende a tudo aquilo, um calo um cancro um nó um nódulo. Talvez porque saiba que sozinho ele não irá muito longe. Talvez porque à diferença de Manuel e Rosa, a cidade tenha olhos espalhados em todos os cantos de aduana e de delação. Talvez por tudo isto, Carlos não traga consigo a obstinação errática de Manuel e Rosa, ou talvez que seja por outras razões que nos escapam. Questões muito próprias e pessoais que não nos teria valia senão a de elencá-las como um dos estigmas e distintivos que a modernidade urbana lhe (nos) amoldou – a condição do indivíduo solto solito sozinho.

E Carlos dará a meia volta e regressará até o centro do seu desassossego – São Paulo S/A, a fábrica de autopeças de Arturo com seus fundos falsos em que se tramam negociatas sob o pretexto do desenvolvimento nacional e onde se esfola a massa de operários lhes pagando salários que não chegam ao final do mês, lhes furtando qualquer direito trabalhista. E Carlos retornará ao lar doce lar em que impera a vontade de ascensão social de Luciana. E Carlos recomeçará o seu trabalho de sísifo, solito, solitário, um indivíduo entre outros indivíduos, atomizado e impotente. Resta saber até quando Carlos, entoará o seu mantra, a sua tarefa de todos os dias recomeçar, aceitar e outra vez aceitar, aceitar ser uma peça solta dentro de uma engrenagem bastarda, e a se resignar em cumprir as 50 obrigações diárias numa sucursal periférica submetida aos interesses forâneos? Carlos, até quando isto?!
3

É chegada a hora de apresentar estas personagens do filme Esse Mundo é meu, de Sérgio Ricardo. Trata-se de Pedro e Luzia. Comecemos pelo fim – como quem dá nome aos bois logo de cara afim de evitar os jogos de ilusionismo. Luzia irá engravidar. Luzia decidirá interromper a gravidez. Claro está que não terá como escolher a si o atendimento médico a um hospital público. Tampouco recorrerá às assépticas clínicas particulares que atendem à vizinhança chique do bairro da Lagoa, na Zona Sul carioca. Luzia das Dores terá que passar pelos arames improvisados de fiandeira utilizados por Coralina, a fazedora de anjos da favela em que mora. Sem anestesia que não um copo de álcool, a cachaça barata que tonteia e amortece os sentidos. Coralina faz o que pode. Está imersa, tal como Luzia, aos suplícios do dia a dia. Não foi na escola técnica de enfermagem que aprendera o seu ofício, o seu ganha pão improvisado e clandestino. Não fora sob o acompanhamento de especialistas que aperfeiçoara o trato dos gestos, a leveza das mãos, a manobra sutil do tato. Sua costura é rudimentar e intuitiva. Coralina faz de tudo um pouco. Talvez saiba que suas costas, seu ombro é o que melhor a habilita a atravessar sua vida de halteres inglórios. Coralina está de todo subsumida aos acordes da opressão que lhe arrancou desde sempre as ilusões do futuro. A um olhar de soslaio, ela enxerga o trânsito inóspito do deserto às travessias, os arbustos rasteiros, as cobras sorrateiras em veneno letal. O presente de Coralina é aquela hora soturna, em ventos e tempestade, o dentro do barraco no que Luzia sacará o vestido e deitará no estrado de uma cama de pregos; Luzia levantará as pernas, os pés estão trêmulos, as mãos não têm no que segurar, as dores de Luzia extrapolam os olhos que saltam até nós – do outro lado da tela. Nada ali é promessa. Nada restará quando do final da sessão.
Mas o que poderia Luzia? Escolher o reverso do que se deu? Avançar nas ilusões que não comporta o seu corpo franzino? Mirar a cria enchendo-lhe as partes, esticando as carnes por dentro, e ver nela os ajeites de improviso a cada estação que passa? O que poderia Luzia? Se matricular no cursinho de inglês? Decorar as palavras, os verbos, as entonações, a sintaxe, tornar-se nativa do que se lhe impõe, e preparar-se para a Pasárgada de nunca? Sabemos, ela sabe, que o futuro do que fomos está cindido no aramado da ilusão desenvolvimentista. O que deveria, então, fazer Luzia? Macaquear a Carlos, a Luciana, transbordar a tela na que cabe sua personagem, e rasgar as vestes do roteiro que lhe comprime aos gestos, e invadir, ocupar de assalto, lançar-se de brusco noutro filme, noutro conto, noutro romance e repetir à exaustão o cenário exótico demais a ela, a eles, aos de todos que estão mergulhados na favela da Catacumba? Learn, remember, forget, forgot, fine, teach, toach, learn, remember, forget, forgot, fine, found, lose, lost, send, sent, receive, good… É que Luzia não traz consigo ilusões de qualquer espécie – não crê sequer nas palavras de Pedro, não consegue entender o olhar prospectivo do companheiro.
É que Pedro, tal como Luzia, agoniza em si as marcas da opressão capitalista. Opressão acentuada quando se está aos trópicos periféricos. Trópicos nos quais o garante da mais-valia da burguesia local pressupõe a violência extorsiva em níveis estratosféricos. Opressão fundada sobre a opressão imposta desde a vazante dos recursos nacionais ao saqueio do imperialismo e de sua dimensão monopólica. E Pedro, em meio a isto, e exatamente por isto, trabalha intermináveis horas numa oficina de fundição de ferro de médio porte até a extenuação do corpo. Seu salário mal e mal lhe garante o necessário à reposição da força de trabalho. Que dizer de tudo o mais, as suas necessidades básicas e vitais? Nada, nenhum. Nem mesmo o que a burguesia tornou escrito no seu derrame de legislação, se fez ou se fará cumprir. Tiremos a prova dos nove – e vamos ao que se andou escrevendo, o preto no branco:
À época de su a criação (Lei 185, de 14/01/1936), o Salário-Mínimo foi definido como remuneração mínima devido ao trabalhador, sem distinção de sexo – capaz de satisfazer suas necessidades normais de alimentação, vestuário, habitação, higiene e transporte.
O Capítulo III da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT (de 1943) refere-se ao salário-mínimo. O artigo 76 conceitua o salário-mínimo da seguinte forma:
“Art. 76 – Salário-mínimo é a contraprestação mínima devida e paga diretamente pelo empregador a todo trabalhador, inclusive ao trabalhador rural, sem distinção de sexo, por dia normal de serviço, e capaz de satisfazer, em determinada época e região do País, as suas necessidades normais de alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte.”
3. A Constituição de 1946 determina que o salário-mínimo deve atender também às necessidades da família do trabalhador:
“Art. 157 – A legislação do trabalho e a da previdência social obedecerão aos seguintes preceitos, além de outros que visem a melhoria da condição dos trabalhadores:
I – Salário-mínimo capaz de satisfazer, conforme as condições de cada região, as necessidades normais do trabalhador e de sua família (…)”.
4. A Constituição Federal de 1988, no capítulo dos Direitos Sociais, define que o salário-mínimo deve cobrir todas as necessidades do trabalhador e de sua família, ser unificado em todo o território nacional e reajustado periodicamente para garantir o seu poder aquisitivo.
“Art. 7 – São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
IV – Salário-mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim (…)”.
Mas onde está Pedro a isto? Ainda que de braços dados a Luzia, Pedro traz em si o olhar prospectivo – de que Luzia não envergara. Pedro sabe que deve dois meses de aluguel no barraco. Pedro sabe que o patrão, o proprietário da fábrica, não lhe dará nada a mais do que o nada que já lhe oferta em troca de sua capacidade de trabalho infinita. Mas Pedro não desiste. Não quer entregar os pontos. Não quer se render aos arames de Coralina. Não quer se deixar imerso, submergir até o fundo, ingressar em desvãos nos quais não há filete de luz, ou um pouco que seja dos ventos do norte a arejar o dia para além do cerrado do beco e dos percalços da travessia. Pedro quer ver o filho crescer inteligente – não a sapiência que se lhe impõe pelo regrado de conduta malsã. Pedro da Costa tem um nome na boca para o filho que está no ventre de Luzia, Zezinho é este nome. Pedro quer vê-lo crescer com a saúde daqueles que tem a cara suja de comer jaca, jogando bola, brigando de capoeira com os moleques, Pedro quer vê-lo crescer, e auxiliar a que Zezinho entenda a política dos homens pra não ficar aí sem saber o que fazer quando sentir que está sendo explorado pelos outros. Mas será tarde demais. Luzia já se interpôs, ativa, sôfrega, decidida aos hiatos do tempo – quando parece que já não é mais possível estar sob a mesma opressão daqueles que (nos) oprimem a todos. Não haverá Zezinho. Não haverá formas de recomeçar e aceitar. Não haverá desertos a serem percorridos em pernas lépidas. Não haverá memória gorda e pesadona a lancetar desde sempre o futuro que virá. Melhor desmontar o sonho tranquilo dos que oprimem. Pedro parece saber disto. Afinal é seu o gesto derradeiro. Não o de seguir a um a frente de incertezas e derrotas. Não o de tomar o rumo da serra dentro de um carro arrancado de empréstimo numa ligação direta. Pedro volta para a fábrica. Vai ter com os companheiros. Sabe que não pode quedar-se solito sozinho. Pedro irá organizar a luta – que nunca terminará de ser o seu desafio e tarefa.

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¹ Importante salientar, aos devotos contumazes dos escaninhos cerrados da escrita e do conhecimento, que as personagens sacadas a estes filmes nos servem como arquétipos, como tipos que fazem rebater, em síntese, as agruras de um tempo; as utilizamos tais como as vemos: sujas, enlameadas, aturdidas, lambuzadas da materialidade histórica que as atravessa de cabo a rabo. Os filmes, matéria móvel de pensamento e de criação, tantas e tontas vezes são como que pretextos para um caudal de fatos que lhes atormenta e sobreleva. Aqui e agora, cinema literatura são estribilhos de um mesmo fôlego ensaístico.
² Cf. Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964). Link para acesso: https://www.youtube.com/watch?v=OlgBrV-E0v0
³ José Lins do Rego é quem narra: “Tinham vindo para salvar-se da desgraça da família, para limpar o sangue de Judas dos Vieiras. Deixaram tudo, o Araticum vazio, o gado morrendo de fome, a casa triste como uma casa de bexiguento. E estavam todos esperando de Deus, do santo, qualquer coisa. Todos que estavam ali tinham uma fé, uma grande esperança. Os restos de gente do sertão, cegos, feridentos, famintos, tudo esperando o grito que abalasse a formação do mundo”. LINS DO REGO, J. Pedra Bonita (1938). Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1999 (p.189).
⁴ Vejamos este trecho de Rui Facó: “Canudos não era um fenômeno isolado. Numerosos núcleos de levantes de oprimidos do campo surgiram esparsos pelos sertões. Eram, na sua maioria, revoltas primárias contra a brutal exploração, as quais se traduziam em formas as mais diversas, algumas vezes com caráter externo religioso, mas que iam até a luta armada. O isolamento dos diversos núcleos insurgentes e, em consequência, sua fragilidade e vulnerabilidade, determinavam quase sempre sua dispersão e a formação de grupos volantes pelos sertões afora – os cangaceiros – com sua degenerescência, muitos à condição de simples capangas a serviço dos próprios latifundiários”. FACÓ, R. Cangaceiros e fanáticos (1963). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1972 (p.88).
⁵ Em seu ensaio ‘O Cineasta Glauber Rocha e a América Latina’, Gilberto Felisberto Vasconcellos afirma: “Dez anos depois do suicídio de Getúlio Vargas e da Carta Testamento que mostraram a contradição entre o desenvolvimento nacional e os interesses dos trustes norte-americanos, Glauber Rocha filmou Deus e o Diabo na Terra do Sol ciente de que a fome é um subproduto da sociedade colonial em toda a América Latina. O misticismo decorre da penúria e do atraso, o padre come na mão do coronel que contrata o jagunço para matar o cangaceiro, mas o povo sertanejo vê o coronel, dono das terras, como um benfeitor”. IN: Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 43, n.1, janeiro-abril, 2017 (p.183).
⁶ Jean-Claude Bernardet é quem traça uma linha de fratura entre o Fabiano de Vidas Secas e o Manuel de Deus e o Diabo na terra do sol. Desta fratura ele diz: “Se o Fabiano, em vez de curvar-se diante do fazendeiro, se revoltasse e o matasse, Manuel poderia ser seu prolongamento”. Sabemos que Fabiano não matará fazendeiro, tampouco o sicário travestido nas personagens-função ‘soldado amarelo’, todavia também Fabiano e sua família se lançarão ao êxodo de que restará a Manuel e Rosa. Mais à frente, Bernardet tecerá sua crítica aguçada aos modos da revolta a que se lança Manuel. Nos termos de Bernardet: “Sua revolta o levará a associar-se inicialmente ao beato Sebastião, em seguida ao cangaceiro Corisco. O primeiro momento da revolta é um misticismo violento, que promete ao sertanejo um país imaginário em que o deserto vira mar e correm rios de leite. O segundo momento é uma violência mística, a cega destruição. Nos dois casos, trata-se de uma revolta alienada, em que o vaqueiro não afronta seus problemas, mas é desviado deles por atitudes delirantes, que canalizam sua necessidade de mudar a sociedade e sua agressividade”. IN: Brasil em Tempo de Cinema (1967). Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1978 (p.77-8).
⁷ Jorge Amado é quem narra: “São homens jogados para fora da terra pelo latifúndio e pela seca, expulsos de suas casas, sem trabalho nas fazendas, que descem em busca de São Paulo, Eldorado daquelas imaginações. Vêm de todas as partes do Nordeste na viagem de espantos, cortam a caatinga abrindo passo pelos espinhos, vencendo as cobras traiçoeiras, vencendo a sede e a fome, os pés calçados nas alpargatas de couro, as mãos rasgadas, os rostos feridos, os corações em desespero. São milhares e milhares se sucedendo sem parar. É uma viagem que há muito começou e ninguém sabe quando vai terminar porque todos os anos os colonos que perderam a terra, os trabalhadores explorados, as vítimas da seca e dos coronéis juntam seus trapos, seus filhos e suas últimas forças, e iniciam a jornada”. IN: Seara Vermelha (1945). Rio de Janeiro: Record, 1978 (p.56).
⁸ Cf. São Paulo S/A (Luiz Sérgio Person, 1965). Link de acesso: https://www.youtube.com/watch?v=AGNXm36wAp4
₉ Os termos de Caio Prado Jr.: “Uma análise atenta da organização econômica do país nos mostra que o essencial nela, desde a distribuição da população, a estrutura agrária, a disposição dos centros urbanos, a rede de transportes, até o aparelhamento comercial e financeiro, se dispõe sobretudo para atender aos objetivos que desde os remotos tempos de sua formação até nossos dias, a ela essencialmente se impôs: a produção de gêneros exportáveis”. E um pouco mais a frente, já situando certas características do processo de industrialização por substituição de importações: “A ação indiscriminada de tais fatores ocasionais, e muitos deles adventícios, teve frequentemente o efeito de estimular indústrias fictícias, simples atividades de ‘ajuntamento de peças e partes’, que dependiam de fontes externas de abastecimento para todas as suas necessidades, desde a maquinaria até a matéria-prima ou materiais semiprocessados que empregavam. (…) Isso tinha que dar, como efetivamente deu, num crescimento industrial desordenado, desconexo, mal estruturado e fundamentado. Os diferentes setores do parque industrial brasileiro não se desenvolverão em função um do outro, ajustando-se mutuamente para formarem um conjunto harmônico. Cada indústria nascerá pelo acaso de circunstâncias fortuitas e objetivando atender alguma pequena necessidade incapaz de ser satisfeita pela importação”. IN: História Econômica do Brasil (1945). São Paulo: Editora Brasiliense, 1986 (p.298-9).
¹⁰ Trecho sacado da personagem Carlos ao filme São Paulo Sociedade Anônima.
¹¹ Cf. Bambirra, V. O Capitalismo dependente latino-americano (1972). Florianópolis: Editora Insular, 2015 (p.140).
¹² Cf. Esse Mundo é meu (Sérgio Ricardo, 1964). Link de acesso: https://www.youtube.com/watch?v=EgoCgGgCUBA
¹³ Cf. DIEESE – Salário-Mínimo Constitucional – Nota Técnica n.8 – outubro de 2005. Link de acesso: https://www.dieese.org.br/notatecnica/2005/notatecSMIF.pdf
¹⁴ Trecho sacado à personagem Pedro ao filme Este Mundo é meu.
*Texto originalmente publicado em: https://anovademocracia.com.br/o-futuro-do-que-fomos-sob-os-arames-da-ilusao-desenvolvimentista/
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