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Moniz Bandeira: Fórmula para o caos. Um depoimento sobre o golpe de 1973 no Chile

  • grupomonizbandeira
  • 11 de set. de 2023
  • 7 min de leitura

Publicamos abaixo a introdução de “Fórmula para o Caos: A derrubada de Salvador Allende, 1970-1973” de Luiz Alberto Moniz Bandeira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 2008, pp.35-44.

O texto é o primeiro de uma série de artigos, polêmicas e depoimentos de renomados pensadores e personagens da história latino-americana sobre o Golpe de Estado de 11 de setembro de 1973 no Chile.

Foto: Palácio de La Moneda, bombardeado em 11 de setembro de 1973.


Conheci Salvador Allende, em 1964, no apartamento do presidente João Goulart, na praça Villa Biarritz (Pocitos), em Montevidéu, quando foi visitá-lo e prestar-lhe solidariedade, após o golpe de Estado ocorrido no Brasil, naquele ano. O presidente João Goulart estava asilado. E Salvador Allende, um homem muito afável e tranquilo, era então o candidato à presidência no Chile da Frente da Acción Popular (FRAP), constituída pelo Partido Socialista, pelo Partido Comunista e por partido menores. Mostrava-se muito confiante na vitória. Dizia que no Chile as Forças Armadas eram legalistas, não intervinham na política, e que lá havia uma tradição de estabilidade. Essa era a opinião de todos os chilenos, que, àquela época, conheci em Montevidéu, onde eu também estava exilado. Muitos uruguaios igualmente diziam que lá, no Uruguai, não aconteceria o mesmo que no Brasil. O jornalista Guillermo Chiflet chegou a comentar que, se os militares tomassem o governo no Uruguai, o povo expulsá-los-ia do palácio "a puntapies". No início da década de 1970, exilado no Chile, o ex-marinheiro brasileiro Avelino Capitani ouviu os chilenos repetirem algo parecido com respeito ao seu país, onde Allende era mais uma vez candidato à presidência da República: " (O Chile) é diferente, porque o Exército aqui tem uma longa tradição democrática e apoia o governo. O povo apoia o governo e quem se atraver a dar um golpe de Estado será derrotado."

Esse mesmo argumento, que eu ouvira em 1964, voltei a escutar, no final de 1970, quando fui aconselhado a asilar-me no Chile, ao ser libertado após passar quase todo o ano como preso político da Armada brasileira, condenado pela 1ª Auditoria de Marinha, com base em um processo de 1964, devido a minha participação na resistência golpe militar. A expectativa era de que voltaria a ser preso, se ficasse no Brasil. A sentença, que me condenara, fora apenas anulada, eu iria novamente a julgamento e o general Emilio Garrastazu Médici (1969-1974) intensificava a repressão política. No Chile estaria seguro- assim me diziam - porque Salvador Allende se elegera e assumiria a presidência da República. Contido jamais acreditei que Salvador Allende pudesse sustentar-se por muito tempo no governo. O Chile nunca fora um país tão estável como se propalava. Em 150 anos, desde a independência até 1970, lá houve quatro guerras civis e também golpes de Estado, que derruíram os governos existentes. E o fato de que desde 1932 não ocorria um golpe de Estado não significava que a ameaça não existisse. As circunstâncias históricas são mutantes. E o Chile não recebera nenhuma vacina contra golpe de Estado. O excepcionalismo do Chile afigurava-se-me como um mito.

A vivência de uma crise política tem enorme poder pedagógico. Jean-Jacques Rousseau, na sua novela epistolar Julie ou la nouvelle Héloise publicada em 1761, ponderou que "é uma loucura querer estudar a sociedade (o mundo) como simples observador", pois quem deseja apenas observar nada observará, e sendo inútil no trabalho e um estorvo nas brincadeiras, não está em nenhum dos dois lados. De fato, como disse Rousseau, "observamos a ação dos demais na medida em que nós mesmos atuamos". Por sua vez, Karl Kautsky salientou que o que aprendemos com a simples observação das coisas é insignificante comparada com o que aprendemos por meio da experiência. o que atua, se dotado de suficiente preparação científica, entenderá com mais facilidade o fenômeno político de que o estudioso de gabinete, que nunca teve o menor conhecimento prático das forças motrizes da história. E, ao longo de minha vida, não me limitei a ser mero observador.

Vivi intensamente os acontecimentos que culminaram no golpe de Estado no Brasil, em 1964. Essa experiência me permitiu aprender a compreender como a CIA havia operado para desestabilizar o governo do presidente João Goulart. E este, embora empenhado em promover reformas de base para dar impulso ao desenvolvimento econômico do Brasil, não pretendera implantar nenhum regime de tipo socialista, como Salvador Allende se propunha a fazer, ainda que pela "via chilena", com vino y empanadas". Sempre considerei que a "via chilena" para o socialismo era ilusória, contraditória e, econômica e politicamente, inconsistente com a realidade nacional do Chile e a internacional, sobretudo ao contexto da guerra fria. Isso não significa que acreditasse na luta armada. Apenas entendia que qualquer tentativa de implantar o socialismo no Chile, naquelas circunstâncias, iria desembocar, inevitavelmente, em golpes de Estado. Esse entendimento, inter alia, levou-me a permanecer no Brasil, onde, após viver mais de um ano na clandestinidade, fui outra vez preso, no início de 1973.

Assim, em 11 de setembro 1973, quando governo de Allende foi derrubado, eu me encontrava preso no Regimento Marechal Caetano de Farias, no Rio de Janeiro. Depois de passar por padecimentos e/ou interrogatórios nos órgãos de segurança, nós, presos políticos, com curso superior, tínhamos direito a estar em regime de prisão especial, prisão de estado-maior, em quartel, e podíamos receber jornais, que nossas famílias diariamente nos levavam. Lembro-me que Wanda Caldeira Brandt, irmã do sociólogo Vinícius Caldeira Brandt, que fora presidente da União Brasileira de Estudantes e era um dos presos, trazia Le Monde para o quartel. Isso me possibilitou recortar e guardar as notícias publicadas na imprensa, como geralmente sempre diz, a respeito de importantes acontecimentos, sobre os quais um dia eventualmente tenha de escrever. Alguns meses depois saiu publicado em The Washigton Post, edição de 6 de janeiro de 1974, o artigo intitulado "The Brazilian Connection" de Marlise Simons. Já absolvido pelo Superior Tribunal Militar (STM) e libertado na véspera do Natal de 1973, procurei então Marlise Simons, no Rio de Janeiro, para conversar sobre o tema. Guardei todo esse material, com o propósito de um dia estudar a queda de Salvador Allende. Sempre me orientei pelo pensamento de Antonio Gramsci, segundo o qual, "se escrever história significa fazer a história do presente, é um grande livro de história aquele que no presente ajuda as forças em desenvolvimento a se converterem-se me mais conscientes de si mesmas e por isso mais concretamente ativas e factíveis".

Esse foi objetivo de todas as obras que tenho escrito e publicado e também desta- Fórmula para o caos - A derrubada de Salvador Allende. Conquanto meu propósito fosse analisar, especificamente, os fatores externos e internos que concorreram para o derrocamento do presidente Allende, não podia, entretanto, deixar de situá-lo na conjuntura da época, início dos anos 1970, razão pela qual dediquei algumas passagens do livro aos golpes de Estado na Bolívia (1971), no Uruguai (1973) e no Peru (1975), bem como acontecimentos no Brasil, em 1964, e uma vez que todos eles configuraram um fenômeno a guerra fria, não obstante as circunstâncias domésticas existentes em cada um desses países. A simultaneidade de acontecimentos do mesmo caráter, em distintos países, em uma época decorre, no mais das vezes, do processo de internacionalização da política, em que fatores internos e externos se conjugam, se realimentam e determinam o fato histórico.

Não pretendi, decerto, fazer a história do governo Salvador Allende, nem do Chile, naquele período, em seus mais variados aspectos, mas estudar o processo social e político que resultou no golpe militar de 11 de setembro de 1973. Meu esforço foi no sentido de compreender, e desvelar não apenas os fatores externos (operações da CIA, bloqueio invisível), já expostos e denunciados em vários livros, mas também os fatores internos, que igualmente foram fundamentais para a eclosão do golpe de Estado em 1973, embora pouco ressaltados na historiografia sobre o tema. Era necessário explicá-lo em seu conjunto, em sua dinâmica, em seu encadeamento mediato, em sua condicionalidade essencial, porquanto casualidade não existe. O que existe é causalidade, e a determinação de um acontecimento político, seu desenlace, está nas origens do processo histórico que ele culmina. Assim, como acadêmico, tinha de partir de uma linha de hipóteses, entre as quais formulei:

  1. a contradição fundamental entre o Poder Executivo, autoritário na sua essência, e o Poder Legislativo, na República presidencialista, constituiu um dos principais fatores dos golpes de Estado que ocorrem nos países da América Latina;

  2. a contradição entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo marcou toda a história do Chile e esse foi um dos principais fatores que concorreram para derrocada do governo de Salvador Allende em 1973;

  3. o golpe de Estado constitui uma questão de técnica, como sustentou Curziu Malaparte, mas é necessário que existam condições objetivas e subjetivas para a sua execução e a fórmula para criá-las foi a que a CIA se desenvolveu, desde 1947;

  4. mesmo que houvesse no Chile condições tanto econômicas quanto sociais e políticas para um projeto socialista, a "via chilena", i.e., a via pacífica, mediante a qual Salvador Allende e a UP pretendiam realizá-la era absolutamente impensável sem a conquista da maioria parlamentar e o respaldo da maior parte da da população;

  5. a rápida estatização da economia, bem como a atuação dos setores radicais da esquerda no sentido de acelerar e radicalizar o processo revolucionário, em um país industrialmente atrasado e dependente do mercado mundial, facilitaram a ação da CIA e contribuíram para criar as condições objetivas e subjetivas que determinaram o golpe de Estado em 11 de setembro de 1973.

Com base nessa linha de hipóteses, dado que dispunha da documentação já desclassificada nos Estados Unidos e dos volumes contendo os depoimentos prestados durante a investigação realizada no Senado dos Estados Unidos, em 1974-1975, sob a presidência do senador Frank Church (Partido Democrata), solicitei ao Itamaraty que autorizasse o acesso aos documentos secretos, confidenciais, reservados e a outros relativos aos golpes de Estado no Uruguai, na Bolívia, no Peru e, particularmente no Chile, na primeira metade dos anos 1970, uma vez que já havia passado o prazo para desclassificação, previsto no Decreto-lei nº5301, de 9 de dezembro de 2004. Não tive o menor problema, a menor dificuldade, tanto nos arquivos do Itamaraty quanto nos acervos documentais do SNI e do CIEX, que estão depositados na Coordenaria Regional do Arquivo Nacional em Brasília. E, além dessa documentação obtida em fontes primárias, usei amplamente os livros de memórias de personagens do tempo de Allende, e muitos outros, o que me possibilitou cruzar as informações, compará-las, de modo a apresentar, o mais objetivamente possível, os acontecimentos e suas causas, sem as distorções ideológicas que refletem uma consciência falsa e impedem a extração dos ensinamentos propiciados pela experiência da história, embora, conforme George W.F Hegel observou, infelizmente "o que a experiência e a história ensinam é que os povos e governos nunca aprenderam qualquer coisa da história nem se comportam de acordo com suas lições".

(>>>) CONTINUA(...)

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