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Moniz Bandeira: D. João VI e a construção do Estado brasileiro

  • grupomonizbandeira
  • 6 de set. de 2023
  • 16 min de leitura

Atualizado: 11 de set. de 2023


A Chegada da Família Real Portuguesa à Bahia (painel), 1952 Candido Portinari Óleo sobre tela, c.i.d. 381,00 cm x 580,00 cm Reproduzimos abaixo em ocasião do 201º aniversário da independência política do Brasil o Apêndice do livro de Luiz Alberto Moniz Bandeira "A Expansão do Brasil e a Formação dos Estados na Bacia do Prata: Argentina, Uruguai e Paraguai (Da colonização à Guerra da Tríplice Aliança" em sua 4ª edição (2012), Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, págs. 277-288.


Na primeira metade do século XVIII, nas “Instruções a Marco Antônio de Azevedo Coutinho”, D. Luís da Cunha (1662-1749), notável diplomata português, avaliou que D. João V (1689-1750), rei de Portugal, “se achava em idade de ver florentíssimo e bem povoado aquele imenso continente do Brasil”, se, nele tomando o título de “imperador do Ocidente”, quisesse lá estabelecer sua Corte e instalasse o trono na cidade do Rio de Janeiro, que, na sua opinião, “em pouco tempo viria a ser mais opulenta que a de Lisboa”.

Àquela época, o Brasil, cujo território já ocupava uma das quatro maiores áreas contínuas do planeta, desfrutava, sob o regime colonial, de uma situação relativamente muito boa, de alta produtividade, variando de 4 a 40 libras por homem livre. Sua economia era bem maior do que a da Inglaterra, mesmo do ponto de vista industrial (uma industria considerada quase como etapa superior à da agricultura), e incomparavelmente superior à das treze colónias da Inglaterra que se tornariam os Estados Unidos da América. O Brasil exportava diamantes, algodão, fumo, cacau e couro, além de outros produtos, e começava a desenvolver uma indústria de ourives, fiadores de ouro, linhas de prata, seda, tecidos de algodão, uma indústria siderúrgica e até de construção naval, com estaleiros que construíam navios para Portugal. Em largos períodos, apenas a produção e exportação da indústria açucareira ultrapassaram o valor de 3 milhões de libras anuais, enquanto a exportação total da Inglaterra não alcançava tal cifra. Extraiu e exportou para a Europa um volume de ouro equivalente a 50% de todo o ouro até então produzido no mundo nos três séculos anteriores, e igual a toda a produção da América entre 1493 e 1850.

Desde 1700 até meados do século XVIII, Portugal recebeu do Brasil um volume de ouro de aproximadamente 100 milhões de esterlinos, dos quais uma quinta parte — 20 milhões — destinara-se à Fazenda Real, e cerca de 3 milhões de quilates de diamantes, o que propiciou à Coroa, anualmente, um lucro de 5 mil contos, ou seja, 2 milhões de esterlinos. Enorme parte, talvez a maior, foi usada para cobrir o déficit na balança comercial, pagando assim as dívidas de Portugal com a Inglaterra, devido às importações de têxteis e de outras manufaturas, cujo valor superava o das exportações de vinho, intercâmbio estabelecido pelo Tratado de Methuen, de 1703. Com esse tratado, também conhecido como Tratado de Panos e Vinhos, o ouro produzido no Brasil, em larga escala ou, pelo menos, a metade, escoou para a Inglaterra, servindo, como medida de valor, para a circulação monetária do capitalismo e para trasladar de Amsterdã para Londres o centro financeiro da Europa. Não obstante, ainda permitiu à Corte de Portugal desfrutar de enorme luxo durante o reinado de D. João V (1707-1750), bem como foi empregado, posteriormente, na reconstrução de Lisboa, destruída pelo terremoto de 1755. Suas exportações para Portugal atingiram o nível máximo por volta de 1760, quando totalizaram cerca de 2,5 milhões de libras. O Brasil foi, de fato, um “caudal inexaurível” — comentou o grande escritor português Camilo Castelo Branco, visconde Correia Botelho (1825- 1890), acrescentando que “havia as frotas abarrotadas de ouro” e as que foram do Rio de Janeiro e da Bahia, em 1764, levaram para os cofres do reino 15,5 milhões de cruzados, 220 arrobas de ouro lavrado, 8.871 marcos de prata, 42.803 peças de 6$40 réis, 3.036 oitavas e cinco quilates de diamantes. Não sem razão, D. Luís da Cunha ponderou que


(...) o dito príncipe para poder conservar Portugal necessita totalmente das riquezas do Brasil e de nenhuma maneira das de Portugal, que não tem para sustentar o Brasil, de que se segue que é mais cômodo e mais seguro estar onde se tem o que sobeja, que onde se espera o de que se carece.


D. Luís da Cunha aventou a hipótese de que o rei de Portugal, como imperador do Ocidente, “pudesse cuidar em conquistar o reino do Peru até o istmo do Panamá, onde se termina o do México”, admitindo um acomodamento com a Espanha, mediante a troca do Algarves pelo Chile, até o estreito de Magalhães. D. Rodrigo de Sousa Coutinho, conde de Linhares (1755-1812), enunciou em exposição feita à Corte, em 1798, que os “domínios na Europa” já não constituíam “a capital e o centro” do Império português, e excogitou a ideia de transferir a sede da Corte para o Brasil, por entender que, reduzido a si mesmo, Portugal não tardaria a tornar-se “uma província de Espanha”. O conde de Linhares propôs a abolição do regime colonial no Brasil e voltou a instar o príncipe-regente D. João a transferir a Corte para o Rio de Janeiro, quando as tropas da Espanha, em 1801, invadiram a praça de Olivença, e, dois anos depois, em 1803, afirmou


O único meio que ainda resta de assegurar a independência da Coroa de V.A.R. é que, conservando a bem-fundada esperança de se poder assegurar a defesa do reino, deixa a certeza de irem qualquer caso V.A.R. criar no Brasil um grande Império, e assegurar para o futuro a reintegração completa da monarquia em todas as suas partes.


O príncipe regente D. João, em 1801, ouvira também de D. João de Almeida Portugal, segundo marquês de Alorna (1726-1802), a recomendação de transferir a sede da Corte para o Brasil, como forma de manter o reino fora do alcance de agressões por parte de outro estado na Europa e conservar sua independência. E em meado de 1807, quando Napoleão Bonaparte mandou intimar Portugal a aderir ao bloqueio da Inglaterra, ameaçando ocupar-lhe o território, e o general Jean-Andoche Junot, 1° Duke of Abrantès (1771-1813), começou a concentrar tropas em Bayonne, cidade próxima da fronteira com a Espanha, Aires José Maria de Saldanha Albuquerque Coutinho Matos e Noronha, segundo conde da Ega (1755-1827), embaixador em Paris, ao transmitir a nota a Lisboa, advertiu o príncipe regente:


Ou Portugal há-de fechar seus portos aos ingleses e correr o risco de perder por algum tempo a posse de suas colónias, ou o príncipe, nosso senhor, abandonando o seu reino na Europa, ganhado e conservado pelo suor de seus antepassados, irá estabelecer no Novo Mundo uma nova monarquia que, bem que possa vir a ser um império da maior consideração, produzirá uma semelhante medida a maior de todas as revoluções no sistema geral político.


Naquela conjuntura, a dependência económica de Portugal em relação ao Brasil não dava ao príncipe regente alternativa, senão a que o conde da Ega alvitrara: transferir a Corte para a América do Sul, com todas as consequências políticas que daí adviessem. Em 8 de setembro de 1807, Percy Clinton Sydney Smythe, sexto visconde de Strangford (1780-1855), comunicou ao Foreign Office que António de Araújo e Azevedo, primeiro conde da Barca (1754-1817), lhe dissera que, uma vez no Brasil, D. João estabeleceria “um grande e poderoso império, que protegido, em uma primeira infância, pela superioridade naval da Inglaterra, poderia, com o tempo, rivalizar com qualquer outro estabelecimento político do universo”. E em 22 de outubro de 1807 aceitou negociar uma convenção secreta, mediante a qual a Inglaterra protegeria a ida da Corte para o Rio de Janeiro. Dom João, porém, hesitava em dar a ordem, pois entendia que “o dever o proibia de abandonar seu povo até o último instante”. E só o fez em 23 de novembro, depois que chegou a Lisboa um exemplar do Le Moniteur no qual Napoleão Bonaparte anunciava sua decisão de acabar a dinastia dos Bragança e usurpar o trono de Portugal. Então, em 29 de novembro, um dia antes da invasão de Lisboa pelas tropas de Junot, a esquadra inglesa, composta de sete naus, cinco fragatas, dois brigues e duas charruas, além de vários navios mercantes, zarpou para o Brasil, transportando a Corte, cerca de 8 mil a 15 mil pessoas, entre nobres e seus domésticos, magistrados, funcionários e outros cortesãos, bem como aproximadamente 80 milhões de cruzados da Fazenda Real, metade do dinheiro em circulação no reino.

Ao chegar a Salvador, assessorado pelo economista José da Silva Lisboa, barão e visconde de Cairu (1756-1835), o príncipe regente D. João, que recusara ceder à Inglaterra um porto exclusivo — o de Santa Catarina, como lorde Strangford pretendera —, assinou a carta-régia de 28 de janeiro de 1808, abrindo os portos do Brasil às nações amigas e acabando assim com o monopólio do comércio pela metrópole, monopólio sobre o qual o regime colonial se alicerçava, uma vez que Portugal fora ocupado pelas forças de Napoleão Bonaparte. Em seguida, anulou as amarras do sistema colonial mediante o alvará de 1° de abril de 1808. E derrogou tanto a carta-régia de 1766, que proibira no Brasil o ofício de ourives, para evitar o contrabando do ouro e seu desvio do comércio monetário, quanto a carta-régia de 1785, que proibira a manufaturação de fios, panos e bordados e apenas permitia o fabrico de “fazendas grossas de algodão para uso e vestuário dos negros, enfardar ou empacotar fazendas e outros misteres semelhantes”. A historiadora Nícia Vilela Luz ressaltou que o príncipe regente D. João pretendia, sob o signo do liberalismo, inaugurar no Brasil a era industrial, com o objetivo de multiplicar, promover o desenvolvimento demográfico e dar trabalho a um certo elemento da população que não se acomodava à estrutura socioeconômica, baseada no trabalho escravo, então existente. Por sua vez, Raimundo Faoro ressaltou, em Os donos do poder, que “a monarquia portuguesa, assediada pelas armas francesas e pelas manufaturas inglesas, rebelde à absorção estrangeira, voltou-se para a ex-colônia, numa obra quase nacionalista capaz de convertê-la numa nação independente”.

Para um Estado-Império (Staatreich) como Portugal, não importava onde estivesse a sede do trono. Dom João, impressionado com a grandeza do Brasil, empreendeu a liquidação do regime colonial e a construção do Estado brasileiro. Dotou o Brasil de judicatura própria, instituindo uma Suprema Corte, Tribunal de Recursos e Conselho Militar. Criou também o Ministério da Fazenda, o Banco do Brasil, uma Câmara de Comércio, Indústria e Navegação e o Horto Real (Jardim Botânico), aos pés da montanha do Corcovado, para o transplante experimental de novas culturas, e instalou a fábrica de pólvora, o Arsenal de Marinha, para a construção naval, assim como instituiu o ensino superior militar e médico, com a criação do Colégio Militar, do Colégio Naval e da Faculdade de Medicina da Bahia. Outrossim, D. João revogou as restrições à publicação que vigoravam na antiga colónia, e logo começou a circular a Gazeta do Rio de Janeiro, fac-símile da Gazeta de Lisboa. Os primeiros títulos de marquês, conde e barão foram concedidos no Brasil, onde até então mesmo os que eram nobres de nascimento somente recebiam o foro de fidalgo, que era hereditário.

A fim de desenvolver o país, após liquidar o monopólio colonial com a abertura dos portos, D. João criou a Siderurgia Nacional (10 de outubro de 1808) e fundou o Banco do Brasil (12 de outubro de 1808). E, com o alvará de 28 de abril de 1809, tomou outras iniciativas para impulsionar a industrialização, concedendo isenção de direitos aduaneiros às matérias-primas necessárias às fábricas no Brasil, isenção de imposto de exportação para os produtos manufaturados no país e utilização dos produtos brasileiros no fardamento das tropas reais. E ainda outorgou privilégios exclusivos, por 14 anos, aos inventores ou introdutores de novas máquinas, bem como a distribuição anual de 60 mil cruzados às manufaturas que necessitassem de apoio, sobretudo as de lã, algodão, ferro e ação.

O engenheiro militar alemão Friedrich Ludwig Wilhelm Varnhagen, que chegou ao Rio de Janeiro em fins de 1809, recebeu a incumbência de estudar a possibilidade de construir uma siderúrgica, a Real Fábrica de Ferro de Ipanema, no morro de Araçoitaba, perto de Sorocaba, na Província de São Paulo. Em 1810, D. João criou o Real Gabinete de Mineralogia do Rio de Janeiro, sob a presidência de Wilhelm Ludwig Freiherr von Eschwege, geólogo, geógrafo e metalurgista, contratado para proceder ao estudo do potencial mineiro do país. E, em 1812, com o apoio de D. Manuel de Assis Mascarenhas Castelo Branco da Costa Lencastre, conde de Palma, o barão de Eschwege terminou a construção de outra usina siderúrgica, denominada Fábrica Patriótica, perto de Congonhas do Campo, onde se produzia ferro líquido, enquanto, na mesma província de Minas Gerais, a Fábrica de Ferro do Morro de Gaspar Soares, instalada por Manoel Ferreira da Câmara Bittencourt e Sá, obtinha ferro-gusa em oito fornos, com a colaboração de um súdito alemão. Naquele mesmo ano, em Itabira do Mato Dentro (Minas Gerais), foi pela primeira vez extraído ferro por meio de malho hidráulico, com a ajuda do barão de Eschwege, que inovou a mineração de ouro no Brasil, com a introdução dos pilões hidráulicos na lavra do coronel Romualdo José Monteiro, em Congonhas do Campo. E, em 1815, Varnhagen assumiu a direção da Real Fábrica de Ferro de São João do Ipanema, que começou a produção de ferro. Havia algumas outras pequenas fábricas em Minas Gerais e São Paulo, uma das quais, na capital de São Paulo, produziu cerca de 600 fuzis de modelo prussiano, muito bem-acabados.

E um equívoco supor que a Inglaterra quisesse a abertura dos portos do Brasil. O que ela demandara fora um porto exclusivo, o de Santa Catarina, ao sul do Brasil, com o que o príncipe-regente não concordou durante as negociações em Lisboa. E a Inglaterra, inconformada por não obter esse monopólio portuário, pressionou D. João para levá-lo a assinar o Tratado de 1810, que concedia às manufaturas inglesas uma tarifa preferencial de 15% ad valorem, privilégio maior até mesmo que o de Portugal (16%), enquanto as demais nações pagariam direitos da ordem de 24%.

O impulso ao desenvolvimento económico do Brasil, iniciado por D. João, foi sufocado pelo Tratado de 1810, que derrogou virtualmente a abertura dos portos e obstaculizou os esforços de industrialização. A ideia de consolidar o Império português, a partir do desenvolvimento económico do Brasil como nação soberana, unida a Portugal, revigorouse, entretanto, após a pacificação da Europa, com a derrota definitiva de Napoleão Bonaparte na batalha de Waterloo (Bélgica), entre os dias 15 e 18 de junho de 1815. E, em 16 de dezembro de 1815, o príncipe-regente D. João elevou o Brasil ao predicamento de Reino Unido a Portugal e Algarves, reconhecido então como personalidade jurídica do Direito Internacional pelas principais potências da época: Inglaterra, França, Áustria, Prússia, Suécia e Estados Unidos. Tal iniciativa, que contou com o apoio de Charles Maurice de Talleyrand-Périgord, primeiro príncipe de Bénévent (1754-1838), ex-ministro dos Assuntos Estrangeiros de Napoleão Bonaparte, e, após sua derrota, do rei Luís XVIII (1814-1824), visou a robustecer a posição de Portugal vis-à-vis das potências da época e aumentar seu poder de negociação nas relações com a Inglaterra. O Brasil tornou-se, assim, um país soberano, unido a Portugal e Algarves. Este fora um projeto estratégico de grande magnitude, que produziu, como previra o conde da Ega, “a maior de todas as revoluções no sistema geral político”

A história, no entanto, tomou outro rumo. Os súditos portugueses, residentes em Lisboa, no Porto e em outras cidades, não se conformavam com a abertura dos portos do Brasil, uma vez que lhes retirara as rendas aduaneiras, e diziam que Portugal se tornara colónia da colónia. “Quem tinha ligações com a Corte ou com o governo, ou com qualquer instituição patrocinada por eles, ficou sem renda nem carreira”, assinalou Patrick Wilcken, aduzindo que, ao longo dos anos, houve um êxodo contínuo de padres, bibliotecários, burocratas, nobres e mulheres que emigravam para o Rio de Janeiro. Esse fato concorreu para a revolução constitucional, que, em 24 de agosto de 1820, eclodiu na cidade do Porto e se alastrou a Lisboa, bem como à Madeira e a quase todo o arquipélago dos Açores, exprimindo o ressentimento da burguesia e das classes médias, em Portugal, prejudicadas com a emancipação comercial do Brasil. As cortes portuguesas (órgão parlamentar), dominadas pelos liberais, instaram D. João VI para que retornasse a Portugal, o que ele, após muito relutar, terminou por fazer em abril de 1821, e aprovaram uma série de outras medidas, visando a restaurar no Brasil o sistema colonial. Os decretos aprovados não só pretendiam degradar o Brasil do predicamento de reino em igualdade com Portugal, como revelaram o propósito de recolonização e restabelecimento do statu quo anterior a 1808, à abertura dos portos. O objetivo era restituir a Portugal a supremacia política sobre o Brasil, tornando Lisboa único centro de poder. Não era possível, contudo, fazer retroceder o processo histórico. E o fraturamento do Reino Unido tornou-se, por conseguinte, inevitável, embora os brasileiros não o desejassem. O nacionalismo brasileiro, àquele tempo, não buscava a independência do Brasil, mas a manutenção de sua autonomia, a equiparação com Portugal, como Reino Unido.

A independência do Brasil, como sede da monarquia portuguesa, e sua soberania, legitimada com a elevação ao predicamento de Reino Unido, constituíam irreversíveis avanços de um processo histórico. O Estado brasileiro, como instância superior de comando e administração da sociedade, estava montado por D. João VI, que, ao regressar a Lisboa, já havia tomado as primeiras medidas para a convocação da Assembleia Nacional, a fim de elaborar a Constituição, deixando seu filho, o príncipe D. Pedro, como regente, no Rio de Janeiro, munido de todos os poderes necessários ao pleno exercício de um governo administrativa e politicamente autónomo, até mesmo para fazer a guerra e a paz. E D. Pedro, ante as medidas tomadas pelas Cortes de Lisboa, determinando inclusive seu regresso a Portugal, outra opção não teve senão seguir o conselho que seu pai lhe dera antes de viajar: “Pedro, se o Brasil se separar, antes seja para ti que me hás de respeitar, que para alguns desses aventureiros.”

D. Pedro compreendeu que o Brasil se separaria de Portugal, com ou sem a dinastia de Bragança, e que ele perderia o trono se não se colocasse à frente da nação. A separação do Brasil realizar-se-ia sob a forma de república. Por isso, mediante consecutivos atos de rebeldia, tratou de conduzir o processo político, de modo a assegurar a soberania e o direito do Brasil à autodeterminação. E colocou-se à frente dos acontecimentos, segregando o Brasil de Portugal não para subverter, mas para preservar o statu quo, contra a tentativa de restauração do sistema colonial, que os comerciantes de Lisboa pretendiam. Ao tornarse imperador do Brasil, ele apenas levou às últimas consequências a obra iniciada pelo pai, D. João VI, em seus esforços para resistir à prepotência da Grã-Bretanha. Houve um translatio imperii. E a solidariedade da nobreza da terra, sobretudo na Bahia, com a monarquia foi fundamental para conter as forças centrífugas que as tendências republicanas e federalistas representavam, ameaçando não apenas a forma regiminis, mas também a integridade do Brasil e consequentemente sua forma imperii (forma de soberania). Uma vez que não existia no Brasil uma burguesia mercantil com relativa importância, os senhores de engenho constituíam a única classe em condições de assegurar o poder e construir a nação, uma Adelsnation (nação de nobres), qualquer que fosse a forma pela qual a separação de Portugal se processasse. Eles, os senhores de engenho, e outros proprietários de terra possuíam a consciência da nação (natio), da sua integridade territorial, e, não defendessem a realeza (corona regis), que unificava o país, a implantação da república e a desagregação das províncias tornar-se-iam inevitáveis, tal como acontecera na América espanhola. “O fazendeiro é o verdadeiro autor da independência brasileira, da unificação do país, da sua constituição e organização”, escreveu J. F. Normano, antigo professor da Universidade de Harvard, acrescentando que “ele foi uma das colunas do Império, semelhante ao junker prussiano, ao tipo médio inglês, ao Pomestshik russo”, e que talvez essa “comparação seja historicamente a mais correta, porque em parte alguma existe uma ligação tão íntima entre a aristocracia da terra e a monarquia como na Rússia e no Brasil”.

Contudo, no afã de obter o reconhecimento da separação do Brasil, D. Pedro I firmou com a Inglaterra o Tratado de Amizade e Navegação e Comércio, de 17 de agosto de 1827, válido por 15 anos, renovando e adaptando as concessões feitas por Portugal com o Tratado de 1810. Em seguida, celebrou tratados semelhantes com outros Estados, como França, Prússia, Áustria, Dinamarca, Países Baixos e as cidades hanseáticas (Hamburgo, Bremen e Lúbeck). Com os Estados Unidos, em 12 de dezembro de 1828, assinou um Tratado de Amizade, Navegação e Comércio, com o prazo de 12 anos. Esses tratados desiguais, celebrados com base no princípio de nação mais favorecida, concediam privilégios aos Estados estrangeiros que contribuíram para inibir qualquer esforço de industrialização do Brasil.

O liberalismo das baixas tarifas igualmente não foi favorável ao comércio exterior brasileiro, nem foi compensado por investimentos ingleses no Brasil. Ao deixar de ser um entreposto de Portugal, o governo imperial pôde aumentar sua receita, cuja maior fonte era a aduana, porém não teve condições de arrecadar mais recursos, por meio do sistema fiscal, para cobrir sequer a metade dos seus gastos, até que expirasse o Tratado de Comércio com a Inglaterra, em 1844. A intervenção do Brasil nos conflitos do Rio da Prata agravou os gastos, e o governo imperial, com grandes dificuldades financeiras, teve de financiar o déficit das contas públicas com a emissão de papel-moeda.1 Daí que, quando os tratados expiraram, entre 1842 e 1844, o Brasil adotou a política de não renová-los nem celebrar qualquer outro com nação mais poderosa, o que resultou em uma série de incidentes diplomáticos com a Inglaterra e os Estados Unidos, sobretudo depois que o ministro da Fazenda, Manuel Alves Branco, segundo visconde de Caravelas (1797-1855), elevou a tarifa de importação de 3 mil artigos, que passariam a pagar taxas de 30% sobre produtos importados sem similar nacional e 60% sobre produtos com similar produzido no Brasil. Seu objetivo foi aliviar a grave crise financeira, o déficit orçamentário e a balança comercial, problemas enfrentados pelo governo.

A adoção dessa política tarifária não visou apenas a aumentar a arrecadação aduaneira, mas também a gerar condições para o desenvolvimento industrial, tanto que, na sua justificativa, Alves Branco assinalou que “a indústria manufatureira nacional, em todos os povos, constitui o primeiro, o mais seguro e o mais abundante escoadouro de sua agricultura, e a agricultura nacional, em todos os povos, constitui o primeiro, o mais seguro e abundante escoadouro de sua indústria”. Assim, na medida em que afetou seriamente o comércio com a Inglaterra e os negócios dos empresários brasileiros, que passaram a pagar mais caro pelos produtos importados, a Tarifa Alves Branco impulsionou a substituição de importações, com a criação de inúmeras fábricas no Brasil, cujas fronteiras económicas, Irineu Evangelista de Souza, barão de Mauá (1813-1889), também deslocou rapidamente, com seus empreendimentos industriais e bancários, inclusive no Uruguai e na Argentina. Com razão, J. F. Normano assinalou que “sua penetração na região do Prata é um dos mais excitantes capítulos das relações exteriores brasileiras”. E, segundo Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno ressaltaram, inaugurou-se um período, que se estenderia de 1844 a 1876, “caracterizado pela ruptura com relação à fase anterior e pelo robustecimento da vontade nacional”.

Ao contrário dos Estados Unidos, onde a nação terminou por conformar o Estado, o Estado-Império, instituído no Brasil, foi que construiu a nação, sem ruptura da ordem política, a desdobrar a obra empreendida por D. João VI, e assegurou a unidade de vasta extensão territorial. Com razão, o cientista político José Murilo de Carvalho acentuou que a elite brasileira, particularmente na primeira metade do século XIX, teve treinamento em Coimbra, concentrado na formação jurídica, e seria em grande maioria integrante do serviço público, sobretudo da magistratura e do Exército. Ela era ideologicamente homogénea e reproduziu-se no Brasil em condições muito semelhantes. E, conforme José Murilo de Carvalho ainda observou, “essa transposição de um grupo dirigente teria talvez maior importância que a transposição da própria Corte e foi fenômeno único na América”. Na sua opinião, “a maior continuidade com a situação pré-independência levou à manutenção de um aparato estatal mais organizado, mais coeso e talvez mesmo mais poderoso”. Com efeito, o Império do Brasil, na metade do século XIX, já estava consolidado como nação, com um aparelho burocrático-militar capaz de defender e mesmo impor, tanto interna quanto externamente, a vontade política de suas classes dirigentes. Tornara-se potência regional, tanto que o encarregado de negócios da França em Montevidéu, Pierre-Daniel Martin-Maillefer (1798-1877), em 1854, referiu-se ao Império do Brasil como “Rússia tropical”, por ter a “vantagem da organização e a perseverança, em meio dos Estados turbulentos ou mal constituídos” da América do Sul.


St. Leon, dezembro de 2006.


NOTA

1. Celso Furtado, Formação económica do Brasil, 27a ed., São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1998, p.97.

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