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Manifesto Moniz Bandeira

  • grupomonizbandeira
  • 5 de mai. de 2021
  • 6 min de leitura

Atualizado: 13 de mai. de 2021

O colonialismo calou tão fundamente em nós, que somente lemos com verdadeiro respeito os autores anticolonialistas difundidos a partir das metrópoles.

Fernández Retamar, Todo Caliban





Teria o neocolonialismo se transformado em um fenômeno anacrônico, depois dos processos de independência política dos povos da Ásia e da África, no pós-guerra? Para nós, brasileiros e latino-americanos, a questão assume um contorno mais abstruso. Afinal, sofremos ou já vivemos em algum momento manifestações semelhantes às que experimentaram outras regiões do mundo nos séculos XIX e XX? E se pensarmos o neocolonialismo como uma superestrutura que molda até mesmo o pensamento que se pretende “antissistêmico”? Podemos compreender que o ato colonizado se realiza por meio de diversas razões, para além da dominação política direta: da falta de independência econômica, do subdesenvolvimento científico-técnico, da perda da soberania dos recursos naturais estratégicos, da debilidade da soberania alimentar, da pouca autoestima nacional e popular, das concepções abstratas dos sistemas políticos e dos valores desterritorializados das particularidades nacionais e, principalmente, da razão intelectual, científica, cultural e acadêmica, genericamente cosmopolitas, que em seu conteúdo revelam uma outra amarra colonial – a carência de pensamento próprio, livre e original.

A partir de tais questionamentos e constatações, o Grupo de Pesquisas e Estudos Nacionais e Estratégicos – Moniz Bandeira nasceu em abril de 2020 no Rio de Janeiro, em Niterói, em Vitória e em Buenos Aires, reunindo estudantes e trabalhadores que visam à pesquisa e aos estudos em profundidade dos temas estratégicos, da História e das formações sociais, desde a busca pela compreensão das questões estruturantes, a partir de grandes temas, tais como: do Imperialismo; da dependência; da formação social brasileira e dos países da América Latina, da África e da Ásia; da dominação cultural; do pensamento autóctone e nacional; do marxismo criativo, não colonizado e não eurocêntrico; da geopolítica real e da geopolítica dos interesses; da guerra e da teoria da guerra.

A iniciativa, conforme indica em seu nome, parte de uma homenagem à vida e à obra de Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira (1935-2017), pensador baiano que contribuiu para diversas áreas dos estudos estratégicos e do pensamento crítico, como a Ciência Política, a História, a Geopolítica, a Literatura e o Jornalismo, sendo um dos mais destacados intelectuais brasileiros dos séculos XX e XXI. A partir dessa premissa, o grupo, formado por jovens intelectuais de origem proletária e que não necessariamente estão inseridos no campo acadêmico, baseia-se em Moniz Bandeira para além de sua trajetória como pensador original, mas também em seu percurso militante como um dos fundadores da Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop) ao lado de revolucionários como Ruy Mauro Marini (1932-1997), Theotonio dos Santos (1936-2018) e Vania Bambirra (1940-2015), formuladores da teoria marxista da dependência, uma das contribuições mais originais e criativas do marxismo latino-americano.

Com o golpe empresarial militar de 1964, Moniz Bandeira foi expulso do Brasil e acompanhou o presidente João Goulart ao Uruguai, regressando clandestinamente ao país em 1969. Depois, chegou a ser preso em dois períodos (1969-1970 e 1973) no Centro de Informações da Marinha (CENIMAR), mesmo lugar em que foi encarcerado e torturado Ruy Mauro Marini. Durante sua prisão de 1973, a editora Civilização Brasileira, por meio do trabalho de Ênio Silveira (1925-1996), outro grande brasileiro, publicou Presença dos Estados Unidos no Brasil (dois séculos de História), também traduzido e publicado na URSS no mesmo ano.

Como teórico e pensador político de relevância internacional, Moniz Bandeira teve papel fundamental na fundação e na organização do Partido Democrático Trabalhista (PDT), liderado pelo caudilho popular Leonel de Moura Brizola (1922-2004), de quem fora amigo e assessor. Moniz Bandeira auxiliou o político rio-grandense no estabelecimento de relações com a Internacional Socialista e com lideranças de partidos social-democratas europeus. Foi ainda Diretor Superintendente do Instituto Estadual de Comunicação (INECOM) e da Rádio Roquette Pinto, durante o primeiro governo de Brizola no Estado do Rio de Janeiro (1983-1987) e, posteriormente, formulador das questões de política externa da primeira candidatura de Brizola à Presidência. Seu elo com o líder gaúcho já se expressara anteriormente com a publicação do livro Brizola e o Trabalhismo (1979), no qual apresentou o companheiro como um importante pensador da realidade brasileira, devido a sua práxis comprometida com as angústias e sentimentos do povo.

Moniz Bandeira viveu na Alemanha de 1981 até seu falecimento. De lá, na Universidade de Heidelberg, chefiou pesquisas referentes aos conflitos na Bacia do Prata e foi nomeado cônsul honorário do Brasil na cidade. Ademais, foi indicado ainda, em 2015, ao Prêmio Nobel de Literatura, graças às contribuições que suas dezenas de obras promovem para a compreensão não apenas da realidade brasileira e latino-americana, mas também mundial. O cientista político se converteu em uma inspiração como um intelectual profundamente nacional e elevadamente internacional, superior ao pensamento cosmopolita, o qual se mostra desenraizado das realidades concretas e sincronizado diacronicamente aos modismos eurocêntricos do academicismo estéril.

Teve várias passagens como professor convidado em universidades pelo Brasil, pela América Latina e pela Europa. Mesmo após ter se aposentado como docente universitário, Moniz Bandeira continuou se debruçando sobre os problemas estratégicos do Brasil e do mundo e publicando diversas obras, entre elas A Formação do Império Americano (2005), que lhe rendeu o Prêmio Juca Pato da União Brasileira de Escritores (UBE).

O Grupo Moniz Bandeira surge nos marcos das últimas mudanças globais, para as quais nosso homenageado trouxe contribuições que deverão ser estudadas e desenvolvidas ao longo das próximas décadas. Entre suas colaborações, está a nova estratégia de exercício de dominação hegemônica global do Império Estadunidense, chamada “Dominação de Espectro Total” (Full Spectrum Dominance), além das novas formas de ingerências e desestabilizações imperialistas, como as revoluções coloridas, as guerras por procuração, as guerras midiáticas, as guerras judiciárias, as guerras híbridas e as “primaveras” inicialmente “árabes” (hoje, generalizadas pelo mundo, principalmente nos países dos três continentes não ocidentais). Lembremos que o Brasil foi alvo dessas novas modalidades de guerra, resultando no sofisticado golpe de Estado de 2016 cujos desdobramentos permanecem em movimentos inconclusos, abertos a um futuro incerto e instável, afetando a dinâmica política de toda região latino-americana.

Em suas últimas reflexões, Moniz Bandeira apontou tendências que se afirmam cada vez mais. A decadência econômica do “Império”, como resultado do extremo endividamento público dos Estados Unidos e de sua quase total dependência do Complexo Industrial-Militar (o qual, contraditoriamente, é o maior responsável por seu superendividamento), faz com que os estadunidenses percam cada vez mais seu status como potência unipolar no cenário global, ainda que mantenham sua primazia beligerante com as centenas de bases militares espalhadas pelo mundo e se privilegiem de uma economia mundial regida pelo dólar, ao mesmo tempo em que a China se ergue como superpotência econômica, industrial e tecnológica, assim como a Rússia que, embora destroçada economicamente com o fim da União Soviética (ainda que nunca derrotada militarmente), vem se recuperando agora em um contexto de aproximação mais sólida com a China e com potências emergentes regionais como o Irã.

Tal cenário histórico conjuntural encontra sua base econômica na crise do capital eclodida em 2008, de lastro histórico comparável somente à crise de 1929. Para muitos intelectuais, o momento apresenta o caráter de crise estrutural e orgânica do capital (crise de paradigma e mensuração de valor), que se aprofundou no ano de 2020 com a pandemia de COVID-19 e com a abertura de uma II Guerra Fria neste século, entre EUA e seus já mencionados sócios da OTAN x China/Rússia/Irã. O resultado disso é a necessidade de desenvolver o estudo radical dos temas estratégicos, em um cenário cada vez mais complexo em que a luta pela manutenção e pela ampliação da dominação imperialista se sofistica a cada dia.

Seus efeitos colaterais se expressam na América Latina desde os golpes em Honduras (2009), no Paraguai (2012) e no Brasil (2016). Além disso, manifesta-se também nos processos de perseguições midiáticas e jurídicas com aparatos de infiltrações externas (lawfare), que se generalizaram por toda a região, somados aos bloqueios econômicos criminosos na Venezuela, em Cuba e na Nicarágua, no Estado de contrainsurgência permanente na Colômbia, no assassinato de lideranças sociais e na ascensão de uma nova direita como simulacro das alas mais fundamentalistas do Partido Republicano dos EUA, as quais passaram a operar soluções golpistas/bonapartistas/protofascistas no Brasil, em El Salvador, na Guatemala etc. Isso implica que a luta por outra hegemonia, pela soberania nacional, econômica, militar, alimentar, ecológica, científica e intelectual e pela construção de um mundo multipolar se torne uma tarefa ainda mais labiríntica.

Dentro desse quadro, o Grupo Moniz Bandeira almeja ser uma semente para o pensamento próprio, uma fábrica de recuperação e de atualização das contribuições do pensamento original, principalmente brasileiro e latino-americano, buscando fornecer aportes para teses sobre a realidade nacional e internacional, a serviço de lutadores e lutadoras do nosso povo, dos movimentos sociais, dos grupos de educação popular e dos partidos políticos que tenham compromisso com a soberania nacional, com o anti-imperialismo e com a luta pelo socialismo. Descolonizar as mentes do nosso campo de produção de conhecimento e das próximas gerações é construir um futuro pleno para o Brasil, a fim de, finalmente, enxergar o mundo com os próprios olhos.

“(...) arruinando gradativamente as economias naturais e pré-capitalistas, o capitalismo vinculou todos os povos em um sistema de vasos comunicantes e tornou as sociedades interdependentes, apesar e/ou em consequência da diversidade de seus graus de progresso e de civilização, ao mesmo tempo em que gerava o Estado-nação, forma histórica imprescindível sob a qual a burguesia passou da defesa nacional a posições de ofensiva, da autoproteção e da concentração da própria nacionalidade à política de usurpação e dominação de outras nacionalidades. Não foi por outra razão que Marx e Engels lançaram o apelo: 'Proletarier aller Länder, vereinigt euch!'”(Moniz Bandeira, Formação do Império Americano)


Grupo de Pesquisas e Estudos Nacionais e Estratégicos – Moniz Bandeira

Dezembro de 2020.

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