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FORMAÇÃO DO PCB (Por Moniz Bandeira)

  • grupomonizbandeira
  • 23 de mar. de 2022
  • 17 min de leitura

* Com colaboração de Clóvis Melo e A.T Andrade.


Em comemoração ao centenário de fundação do Partido Comunista - Seção Brasileira da Internacional Comunista (PC-SBIC), ou simplesmente Partido Comunista do Brasil (PCB), fundado nos dias de 25, 26 e 27 de março no Rio de Janeiro e em Niterói publicamos o capítulo 21 de o "O Ano Vermelho: A Revolução Russa e seus reflexos no Brasil" de Moniz Bandeira, Clóvis Melo e A.T Andrade, livro fundamental para a compreensão da formação do movimento operário no Brasil e do PC no Brasil, lançado originalmente em 1967 em comemoração aos 50 anos da Revolução Soviética, e relançado em versão revista e ampliada em 2017 ano centenário da revolução dirigida por Lenin, conforme publicamos o trecho abaixo.


Viva o Centenário de fundação do Partido Comunista - Seção Brasileira da Internacional Comunista (PC-SBIC), data pertencente ao povo brasileiro!



Foto: Revista Movimento Comunista, periódico do Grupo Comunista, agrupamento germinal do Partido Comunista do Brasil.


A ideia de organizar um partido proletário perseguiu muitos militantes de esquerda, desde a Revolução Russa, ainda que não visassem a participar de eleições ou coisa parecida, a entrar no jogo político das classes possuidoras, o que então significava verdadeiro opróbrio para a grande maioria dos anarquistas, que predominavam no movimento operário do Brasil. Compreendiam a necessidade de congregar os revolucionários e coordenar os esforços, para outra investida contra o Estado burguês, e sentiam a insuficiência das entidades de massas, as uniões de resistência e federações operárias, com vistas à consecução do objetivo: preparar a insurreição. A Revolução Russa, que – sabiam – um partido dirigira, rasgou os horizontes e influiu, profundamente, para demonstrar que a deficiência e a incapacidade teórica e política afetavam as concepções revolucionárias do anarquismo, devido à falta de organicidade.

Alguns intelectuais e líderes operários, em 1921, formaram a Coligação Social, de onde pretendiam evoluir para a criação de um partido de vanguarda. Definiam como propósitos:

1. Estabelecer relações entre os diversos núcleos de propaganda espalhados pelo país, de forma a facilitar um balanço nas forças de real atuação. 2. Promover e auxiliar moral e economicamente a organização de centros de estudos sociais e amparar os já existentes. 3. Preparar, por meio de conferências ou congressos regionais, a realização de um grande Congresso da Vanguarda Social do Brasil, que deverá estabelecer os fundamentos de um partido de ação intensa, princípios rígidos e programa perfeitamente definido.


A esse mesmo tempo, no Rio de Janeiro, alguns intelectuais constituíram o Grupo Clarté, acompanhando uma iniciativa dos franceses, entre os quais Henri Barbusse (1873-1935), com quem o deputado Maurício de Lacerda se encontrara em Paris, por volta de 10 ou 11 de novembro de 1918. A ele, Maurício de Lacerda, coube criar no Brasil o Grupo Clarté, juntamente com Everardo Dias e Nicanor Nascimento, que lançaram a revista Claridade. E conclamaram:

Apesar do sangue de que estão cobertas, contra a vontade, nossas mãos estão hoje prontas para reconstruir o mundo de acordo com vós todos. Acaso devem ainda separarnos a lembrança e até o remorso trágico de havermos sido, durante mais de quatro anos, os obreiros do massacre e da esterilidade? Dissemos a verdade e não acreditamos nas mentiras e todavia marchamos uns contra os outros, lutamos como numa justa, atracamo-nos como gladiadores na arena surda. Que velho insensato, que velha doutrina morta ousaria levantar-se, que inconcebíveis apetites ousariam manifestar-se contra nós? Não queremos que se sirvam de nós para continuar a guerra na paz. Intelectuais combatentes dos países ontem inimigos, nós temos pressa de rever o contato das vossas inteligências e dos vossos corações. Intelectuais combatentes do mundo, sabemos que sois incontáveis os que pensais como nós e que durante cinquenta meses suportastes vida de culpados por trás da serenidade das vossas almas de justos. Intelectuais combatentes do mundo inteiro, nós vos estendemos os braços, fraternalmente, no desprezo lúcido pelos ódios hereditários. A nossa tarefa será rude daqui por diante, mais temível ainda que a ordem. Essa tarefa nos colocará a todo instante em face da nossa consciência, no meio das perseguições com que os nacionalismos bárbaros nos assaltarão. A nossa estreita união será a nossa força. É tempo de nos levantarmos nas nossas respectivas pátrias contra os fautores de guerras e desordens. Intelectuais combatentes do mundo inteiro, unamo-nos!


O comitê internacional executivo do Groupe Clarté, na França, fora constituído por notáveis e famosos escritores e intelectuais, tais como Henri Barbusse, Georges Brandes, Paul Colin, Victor Cyril, Georges Duhamel, Eckhoud, Anatole France, Nöel Garnier, Charles Gide, Thomas Hardy, Henry-Jacques, Vincente Blasco Ibanez, Andreas Latzko, Laurent Tailhade, Raymond Lefebvre, Madeleine Marx, E. D. Morel, Edmond Picard, Charles Richet, Jules Romains, Rene Schickele, Séverine, Upton Sinclair, Steinlen, Vaillant-Couturier, H. G. Wells, Israel Zangwill e Stefan Zweig. Também na Grã-Bretanha formou-se o Groupe Clarté, com a participação de escritores e líderes sindicais, tais como o filósofo Bertrand Russell, H. G. Wells, Bernard Shaw, Robert Williams (secretário-geral da União dos Trabalhadores em Transporte), Frank Hodges (secretário da União de Mineiros), Miles Malleson, Siegfried Sassoon, Robert Dell e outros.

O movimento iniciado na França, em 1919, inspirado pela carnagem, o horror da guerra travada na Europa, a confirmar a previsão de Jean Jaurès: “Quel massacre, quelles ruines, quelle barbarie!”, era essencialmente antimilitarista, anticapitalista, e Henri Barbusse, em um pequeno livro de 153 páginas, intitulado La Lueur dans l’Abîme – Ce que veut le Groupe Clarté, com a epígrafe “Nous voulons faire la Révolution dans les esprits”, denunciou a guerra mundial de 1914-1918, que havia criado a riqueza de alguns à custa do empobrecimento de muitos, os “grands traquants da l’Entente”, e declarou que “la guerre contre la Russie est une aventure néfaste pour tous”. O objetivo de Henri Barbusse e outros velhos combatentes, tais como Raymond Lefebvre, Paul Vaillant-Couturier e Noël Garnier era constituir “une Internationale de la pensée”. A revista Clarté, publicada pelo grupo sob a direção de Jean Bernier (1894-1975), constituiu um veículo de educação revolucionária e muitos intelectuais franceses escreveram e consultaram as suas páginas. O Groupe Clarté, no entanto, era eclético, vários poetas integraram a escola do surrealismo, como André Breton e Benjamin Péret, que se aproximaram de Trotsky e se opuseram à escola literária Proletkult (Proletarskaya Kultura), defendida pelo escritor Alexander Bogdanov (1873-1928), o poeta Mihail Prokofyevich Gerasimov (1889-1939) e patrocinada por Anatoly Lunacharsky, comissário de Povo para a Educação. Diversos escritores e poetas franceses, que integravam o Groupe Clarté, foram seduzidos pelo modelo soviético e aderiram ao Partido Comunista da França (PCF). O Groupe Clarté desapareceu em 1928.

Foto: Revista Claridad, sediada em Buenos Aires e dirigida por José Ingenieros foi fundamental propagandista da revolução soviética na América Latina, suas nove edições estão disponíveis no sítio América Lee do Centro de Documentación e Investigación de la Cultura de Izquierdas (Argentina): https://americalee.cedinci.org/portfolio-items/claridad/


Outros grupos Clarté também se formaram em Montevidéu, em Buenos Aires e em Santiago do Chile, locais onde também tomaram o nome de Claridad, em Lima e outras cidades da América Latina. A fundação do grupo, no Brasil, coube a Evaristo de Morais, Maurício de Lacerda, Nicanor Nascimento, Luís Palmeira, Antônio Corrêa, Agripino Nazareth, Alcides Rosas, Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, A. Cavalcanti, Tereza Escobar, Vicente Perrota, Francisco Alexandre e Everardo Dias. Mais trinta pessoas, entre as quais diversos líderes operários, aderiram ao movimento, que tinha como objetivo a defesa da Revolução Russa, compreendida, por muitos, devido à campanha da imprensa. Dada a intensa correspondência com as congêneres de Montevidéu e Buenos Aires, iniciou-se a publicação de uma revista, intitulada Clarté, cujo primeiro número saiu em setembro de 1921. E assim explicou-se os motivos de sua publicação:


Os processos de força, de maior violência, foram logo postos em evidência pelas polícias das capitais sul-americanas. Na Itália, o poder econômico arregimentou o fascismo. Na Argentina, o nacionalismo. Na ordem política, o processo contra o senador Iberlucéa na Argentina, por lesa-patriotismo, e a exclusão acintosa do Congresso Nacional de Nicanor Nascimento e Maurício de Lacerda, no Brasil, pelo avançado de suas ideias, dão muito clara a medida da intolerância dos dirigentes. Na execução destes processos de violência tudo vai de roldão. Os velhos princípios, as garantias liberais, chamadas constitucionais, das antigas e novas democracias – o respeito pela verdade falada e escrita, o intercâmbio intelectual, a propaganda de ideias, a livre locomoção, os direitos de associação – vivem arrasados pelos que manobram todos os elementos de força, de dinheiro e de informação. A verdade sobre os acontecimentos mundiais, absolutamente necessária à evolução da mentalidade humana, é cuidadosamente escondida e substituída pela verdade convencional das agências telegráficas, todas subvencionadas pelos governos interessados no obscurantismo. Dos acontecimentos mundiais a Liga das Nações tenta fazer monopólio. A Santa Aliança, dirigida pelos elementos oficiais da França reacionária, com uns enfeites do falecido ideal wilsoniano por ele mesmo repudiado sob a pressão dos businessmen da Quinta Avenida, procura galvanizar pela força as organizações imperialistas da Europa assegurando a conquista territorial para os impérios e a exploração dos mercados para o capitalismo usurário dos sócios da mesma. Contra essa Liga de noite e de sombra, com ritos medievais e tratos de inquisição, é que se ergue a Internacional do Pensamento, funda-se a Clarté de Paris e alevanta-se a de Buenos Aires e, agora, erigimos esta Claridade amiga. Paris deu ao mundo o fulgor de Barbusse, com a magia de Anatole France; a Argentina fala pela voz do sábio Ingenieros e pela palavra fulgurante de Iberlucea; nós batalharemos pela energia dos melhores e mais livres dos nossos intelectuais.


Buenos Aires e Montevidéu abasteciam o Grupo Clarté com informações sobre a Rússia Soviética e destarte contribuíam para cooptar intelectuais e militantes de esquerda, abalados pelos depoimentos de anarquistas, contrários ao autoritarismo das políticas de Lenin e Trotsky. Do Grupo Clarté, no Brasil, participaram, desde o início, Afonso Schmidt, F. de Campos Andrade, Martim Francisco, Ribeiro de Andrade, Antônio Figueiredo e Nereu Rangel Pestana, de São Paulo; Leônidas Rezende, Luís Frederico Carpenter e Joaquim Pimenta, do Rio de Janeiro; Raul Azedo, de Recife. Segundo Everardo Dias, “O Grupo Clarté realizou profícua obra de esclarecimento, pois, não tendo a sua revista o caráter polêmico e irreverente das publicações consideradas extremistas, era recebida e lida com certa atenção, produzindo um clima de atenuação às mentiras e calúnias veiculadas pelas agências telegráficas a serviço dos governos reacionários e imperialistas”. E acrescentou:

Posso mesmo dizer, com conhecimento, que veio servir de confirmação a muitos cientistas, parlamentares e intelectuais sobre o que realmente se passava na URSS, e teve atuação culminante nos movimentos insurgentes que abalaram pouco depois o país; foi uma espécie de varinha de condão a despertar-lhe a clarividência, pois a tiragem da revista Clarté era de 2.000 exemplares, boa para o momento.


Alguns dos principais líderes do Grupo Clarté iniciaram, paralelamente, démarches para a formação de um Partido Socialista, congregando, segundo Everardo Dias, “os elementos ativos e entusiastas que se encontravam à frente dos sindicatos moderados tanto da capital da República como dos Estados e com os quais mantinham contato permanente e dispunham de prestígio, especialmente Nicanor Nascimento e Joaquim Pimenta, este no Norte do país e o primeiro no Distrito Federal”. O novo Partido Socialista participaria de eleições e aproveitaria todos os meios que lhe oferecesse a sociedade, para a propaganda de suas ideias, mas não teria caráter eleiçoeiro e parlamentar. Tentava-se imprimir continuidade à ação política da classe operária, superando a fase das lutas eminentemente econômicas e sociais. O programa estabelecia:


A luta sindical exclusiva como tem sido, porque visa de preferência ao aspecto econômico do problema social, não tem dado os resultados que esperavam; opera-se em um terreno em que o operariado se encontra numa situação desvantajosíssima para com o seu adversário – o patronato solidamente organizado e admiravelmente armado de recursos contra os quais tem sido pouco eficiente, para não dizer ineficaz, toda luta reivindicatória. É preciso, pois, ampliar o campo de batalha, lançar mão de outros elementos, recorrer a outros meios estratégicos, tanto mais quanto no nosso país a grande massa proletária ainda não encarou com objetividade a significação e o alcance dos princípios sindicalistas. O Partido Socialista visa, pois, a nortear o operariado nas suas reivindicações e na defesa de seus ideais; discutir e pleitear a solução prática de todos os problemas que se relacionam com a remodelação da sociedade contemporânea, no ponto de vista econômico, moral, intelectual, jurídico e político; estudar, sob os seus diferentes aspectos, o trabalho nacional e os meios de melhorar as atuais condições de existência das classes assalariadas; advogar a coparticipação dos advogados nos lucros das empresas industriais, comerciais e agrícolas; fundar universidades populares, bibliotecas e centros de conferências públicas; instituir serviços de assistência médicofarmacêutica e judiciária e outros que possam favorecer o avanço do movimento socialista brasileiro.


A Coligação Social, apesar de promover algumas conferências e reuniões, não sobreviveu. O Partido Socialista também não chegou a atuar. Quando se achava na fase de estruturação, desabou o estado de sítio sobre o país, decretado pelo presidente Epitácio Pessoa (1865- 1942), em 5 de julho de 1922, como consequência do levante dos tenentes, no Forte de Copacabana, contra a eleição de Arthur Bernardes (1875-1955), a manipulação e o monopólio do poder político no Brasil pelas oligarquias cafeeiras de Minas Gerais e São Paulo. Desde 1921, porém, militantes revolucionários, que se distanciavam do movimento anarquista, desenvolviam atividades para constituir, com base nos princípios da III Internacional, o Partido Comunista do Brasil. O trabalho de articulação coube a Astrojildo Pereira (1890-1965), e ele procurou congregar, no Rio de Janeiro, os companheiros anarquistas a favor do desdobramento da Revolução Russa como ditadura de operários e camponeses, aqueles que não se converteram ao antibolchevismo quando perceberam que o Poder Soviético não correspondia aos ideais libertários, tais como Fábio Luz, José Oiticica, Pedro Mattera, Edgard Leuenroth, Carlos Dias, Adelino de Pinho, Florentino de Carvalho, Antônio Campos e Manuel Perdigão – homens dos mais dignos e honestos.

A 7 de novembro de 1921, no Rio de Janeiro, Antônio de Carvalho, Antônio Branco, Antônio Gomes da Cruz Jr., Astrojildo Pereira, Aurélio Durães, Francisco Ferreira, João Argôllo, José Alves Diniz, Luiz Perez, Manuel Abril, Olgier Lacerda e Sebastião Figueiredo criaram o Grupo Comunista. A reunião realizou-se na sede do antigo Centro Cosmopolita, à Rua do Senado nº 215. O objetivo consistia em promover a Fundação do Partido Comunista do Brasil e, imediatamente, promoveu as démarches junto a núcleos existentes em outras cidades, como São Paulo, Cruzeiro (SP), Santos, Juiz de Fora, Recife e Porto Alegre. À União Maximalista de Porto Alegre, a mais antiga de todas as organizações regionais, solicitou que passasse a chamar-se Grupo Comunista. Outros grupos, que passaram a se chamar comunistas, e simpatizantes do Poder Soviético, haviam surgido em distintas cidades do Brasil, após a revolução bolchevique. Eram grupos pequenos, meramente locais, a mais das vezes sem consistência e incertos.

Foto: jornal anarco-sindicalista A Vanguarda, esse periódico foi um elo fundamental de transição de anarquistas para o bolchevismo (CEDEM/Asmob).


Afonso Schmidt revelou que, em fins de 1921, estava ele na redação do jornal operário A Vanguarda, fundado por João da Costa Pimenta, em São Paulo, quando lhe apareceu um “homem de estatura meã, vestido azul-marinho, pasta de couro debaixo do braço e um daqueles chapéus de fibra que não tinham forma estabelecida, ou melhor, ficavam na cabeça do jeito que a gente atirava”. Ele queria falar com o dono, porém, como se tratava de uma cooperativa libertária (a que editava A Vanguarda) não havia nem chefe, nem dono, e Afonso Schmidt indicou-lhe o nome do camarada que mandava mais, ou seja, Edgard Leuenroth. O cidadão falava espanhol razoavelmente e se dizia inglês, representante de importante fábrica de tecidos de Manchester.

Na sua crônica “O cometa de Manchester”, Afonso Schmidt referiu-se ao Hotel Terminus, mas, segundo Edgard Leuenroth, ele se equivocou. O misterioso homem hospedara-se no Palace Hotel, à Rua Florêncio de Abreu, 418. Afonso Schmidt contou que


Era de Londres e estava em viagem de inspeção. No momento, residia em Buenos Aires e fazia parte do Secretariado Comunista da América do Sul. Passando pelo Brasil, ficara admirado de não encontrar aqui o Partido Comunista, numa terra onde o proletariado, a julgar pelo que tinha visto, lutava com tanta valentia pelos seus direitos. – Por que o senhor não funda o Partido Comunista do Brasil? – perguntou. – Porque não sou bolchevista. – Nesse caso, indique-me alguém capaz dessa obra. Edgard pensou um pouco. – Indico. Chama-se Astrojildo Pereira. Mora no Rio de Janeiro. – Preciso falar urgentemente com ele. Estabelecido esse encontro, os dois saíram para a rua a passeio. E, conversando – foi Edgard que me contou – chegaram à Luz, tomaram a Av. Tiradentes, alcançaram a Ponte Grande e foram parar em Santana, sem se darem conta de quanto haviam caminhado. Ali, tomaram o bonde para a cidade e se despediram à porta do hotel. Três dias depois, Astrojildo Pereira desceu de um vagão de segunda classe, do diurno, na Estação do Norte. Foi recebido pelo Edgard que, na mesma noite, o apresentou ao “cometa” de Manchester. Ambos se entenderam muito bem. Eram como velhos amigos. Do que eles assentaram nas suas conversas nada se sabe. Mas Astrojildo Pereira voltou para o Rio de Janeiro, e, pouco a pouco, ao longo dos anos que se seguiram, foi surgindo o partido. Sua primeira publicação era uma revistinha comprida e estreita, com uma foice e o martelo na capa, e tinha o nome de Movimento Comunista. Tudo isso se passou, silenciosamente, num tempo em que a polícia de São Paulo alimentava a esperança de prender o sujeito barbudo, de botas, com a faca atravessada nos dentes, que devia chegar de Moscou para fazer a revolução comunista no Brasil [...]


Edgard Leuenroth confirmou a história de Afonso Schmidt e informou que o personagem se chamava Raminson. O anarquista Edgard Rodrigues, em sua obra, contou o episódio e referiu-se ao emissário como Raminson Soubiroff. Entretanto, cometeu um equívoco ao juntar o nome de Raminson ao de Soubiroff. Ivan Subiroff foi o pseudônimo do jornalista Nereu Rangel Pestana, que criou um personagem assim chamado, como se fosse delegado da República Soviética em São Paulo, e escreveu A oligarchia paulista, publicado em 1919, no qual afirma que no Brasil “é o próprio governo capitalista que prepara e apressa a victória do bolchevismo”, além de denunciar os negócios escusos da burguesia paulista e a brutal exploração da classe operária.

Certamente Raminson era o codinome do homem que procurou Edgard Leuenroth. Astrojildo Pereira não aludiu ao episódio em seu livro a Formação do PCB. Mas o fato foi que o Bureau da Internacional Comunista para a América do Sul entrou em contato com a União Maximalista de Porto Alegre e manteve entendimentos com o Grupo Comunista do Rio de Janeiro, que atuou, praticamente, como centro político, até o congresso de fundação do PCB. A União Maximalista de Porto Alegre, pela proximidade com Montevidéu e Buenos Aires, pôde estreitar seus laços com a IC. Tanto assim que Abílio de Nequete, no congresso, representou, cumulativamente, o bureau para a América do Sul e o PC do Uruguai.

Foto: Em 1919 foi fundado o primeiro Partido Comunista do Brasil sob a sigla PC do B, o partido possuía ainda um caráter anarco-comunista e durou poucos meses. Na foto os fundadores do PC do B de 1919: De pé, Octávio Brandão, Astrojildo Pereira e Afonso Schidt. Sentados, Edgard Leunroth e Antonio Bernardo Canellas (Fundação Maurício Grabois).


Astrojildo Pereira era humilde e modesto, homem simples e culto. Contou Euclides da Cunha que, quando o grande escritor brasileiro Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) agonizava, “ouviramse umas tímidas pancadas na porta principal da entrada”, e quando a abriram, “apareceu um desconhecido, um adolescente, de 16 ou 18 anos no máximo”. Perguntaram-lhe o nome. O jovem “declarou ser desnecessário dizê-lo”. “Ninguém ali o conhecia, não conhecia por sua vez ninguém; não conhecia o próprio dono da casa, a não ser pela leitura de seus livros, que o encantavam. Por isto, ao ler nos jornais da tarde que o escritor se achava em estado gravíssimo, tivera o pensamento de visitá-lo. Relutara contra esta ideia, não tendo quem o apresentasse: mas não lograra vencê-la, que o desculpassem, portanto. Se não lhe era dado ver o enfermo, dessem-lhe ao menos notícias certas de seu estado”, continuou Euclides da Cunha. E acrescentou:

E o anônimo juvenil – vindo da noite – foi conduzido ao quarto do doente. Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre; beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu. À porta, José Veríssimo perguntou-lhe o nome. Disse-lhe. Mas deve ficar anônimo. Qualquer que seja o destino desta criança, ela nunca subirá tanto na vida. Naquele momento o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo – no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra.


A ensaísta Lúcia Miguel Pereira (1901-1959), na sua obra Machado de Assis, revelou posteriormente que

esse jovem, cujo nome Euclides da Cunha, na página admirável em que lhe fixou o gesto generoso, dizia dever ficar ignorado, era o escritor Astrojildo Pereira. Euclides assistiu à cena, pois, com Mário de Alencar, José Veríssimo, Raimundo Corrêa, Graça Aranha, Coelho Neto e Rodrigo Otávio, além das famílias amigas, velava pela última vez o grande enfermo

Com a mesma humildade, a mesma devoção quase religiosa, que dedicou, durante o resto da vida, à memória de Machado de Assis, como profundo estudioso de sua obra, entregou-se à causa da revolução social e, rompendo com o movimento libertário, teceu fio por fio, juntou peça por peça, reuniu diversos grupos espalhados no país, até fundar, em março de 1922, o Partido Comunista do Brasil, sem que a maioria ainda houvesse assimilado a dialética materialista e a doutrina econômica de Marx e Engels. Apenas repetiam o que a III Internacional ditava, a partir de Moscou.

A essa altura, a Argentina já se havia antecipado ao Brasil. O Partido Socialista da Argentina fora fundado, em 1896, pelo médico e escritor Juan B. Justo, que traduzira O Capital, de Karl Marx, com o apoio de Isidoro Salomó, Estéban Jiménez, Augusto Kühn. E, em 6 de janeiro de 1918, sob o impacto da revolução bolchevique, cindiu-se – Juan B. Augusto e Nicolás Repetto não simpatizaram com a ditadura – e a dissidência, sob a influência do tipógrafo chileno Luís Enrique Recabarren, formou o Partido Socialista Internacionalista (PSI), “representado por dos revolucionarios rusos emigrados a la Argentina a principios del siglo, pero que habían retornado antes del acontecimento de octubre: A. Aleksandrovsky y M. S. Maschevich, por entonces alto funcionario del Comisario del Pueblo de Comercio Exterior”. A gênesis do primeiro contacto do Partido Comunista da Argentina com a IC segue nas penumbras, segundo o escritor Isidoro Gilbert, autor de El Oro de Moscú. Talvez quem estabeleceu foi um desses emigrados, que retornaram à Rússia, após a revolução de fevereiro, decerto através de M. S. Maschevich, o primeiro a retornar de Moscou a Buenos Aires com carnê de delegado ao II Congresso da IC, e provavelmente ele passou pelo Brasil, procurou Afonso Schmidt, esteve com Edgard Leuenroth, e depois se entendeu com Astrojildo Pereira, em 1921.

Foto: Edição de O Capital . Crítica da Economia Política de Marx traduzido ao espanhol pelo argentino Juan B. Justo em 1898, no Brasil somente teríamos uma edição completa da obra em português em 1968, publicado pela editora Civilização Brasileira.


Logo após conhecer as 21 condições para integrar a Komintern, III Internacional ou Internacional Comunista (IC), adotadas no II Congresso que se realizou em Moscou, em 7 de agosto de 1920, e transmitidas em uma circular de Grigoriy Zinoviev (1883-1936) o PSI tomou o nome de Partido Comunista da Argentina.27 Rodolfo Ghioldi (1897-1985), um dos seus principais fundadores, juntamente com Fernando José Penelón, viajou então a Moscou, em 1921, a fim de ajustar o enquadramento do PCA às condições impostas na circular de Grigoriy Zinoviev no III Congresso, realizado em Moscou, entre 22 de junho e 12 de julho de 1921, embora não exista suficiente comprovação. De qualquer modo, o certo é que o PCA mandou ao IV Congresso da IC, realizado entre 30 de novembro e 5 de dezembro de 1922, uma delegação oficial composta de dirigentes de primeira linha, José Fernando Penelón e Juan Greco.

A esse Congresso, PCB, fundado oficialmente em 27 de março de 1922, Astrojildo Pereira mandou como representante Antônio Bernardo Canellas (1898-1936), operário gráfico e oriundo do movimento libertário. E ele, com extrema ingenuidade, defendeu a participação de maçons, protestantes e católicos no PCB, aparteou Trotsky, dizendo que ele estava a fazer “bourrage de crâne” nos participantes do Congresso, criticou seu modo autoritário de falar, e votou contra as propostas organizatórias de Lenin. As ideias surpreenderam os dirigentes da IC pela forte dosagem anarquista que ainda apresentavam, a ponto de Trotsky, em determinado momento, exclamar, ironicamente: “C’est le phénomène de l’Amérique du Sud!”.

Os dirigentes da IC, com o parecer de Boris Souvarine (1895- 1984), resolveram, por isso, não reconhecer imediatamente o PCB, admitindo-o apenas como simpatizante. Antônio Canellas não se conformou com a resolução e, quando regressou ao Brasil, encaminhou um relatório que a direção do PCB não aceitou e lhe exigiu que fizesse autocrítica. Ele se recusou. O relatório, até então secreto, caiu certa vez nas mãos da polícia, ao vasculhar a casa de um militante, e Antônio Canellas, por entender que, se o inimigo já o conhecia, não havia por que escondê-lo dos trabalhadores, divulgou-o numa pequena brochura.

Dois Anos depois, em 1924, o próprio Astrojildo Pereira viajou para Moscou, em companhia de Rodolfo Coutinho (1901-1955), a fim de obter o reconhecimento do PCB pela Internacional Comunista, e lá habitou até 1927. Encontraram Ba, um jovem oriental, imberbe, cabelo na testa, que dividiu quarto com Rodolfo Coutinho, e falava algo de português. Ele lhes contou que havia morado no Rio de Janeiro, em uma pensão no bairro de Santa Teresa, enquanto se recuperava de uma pneumonia. Ali passara algum tempo. Quiçá três meses, enquanto esperava que outro navio o levasse de volta. Não se pôde precisar em que data esteve no Rio de Janeiro, porém Ba viajara, como ajudante de cozinheiro, no final de 1911, na frégate (destroyer) antissubmarino Latouche Treville, da Marinha de França. Tinha apenas 21 anos. Conheceu Oram, Dakar, Diego Suarez, Porto Said, Alexandria. E, depois de uma escala em Boston e New York, abandonou a profissão do mar. Havia muitas passagens obscuras na vida, informações vagas, dados incompletos. Mas, evidentemente, foi por volta de 1912 que ele viveu no Rio de Janeiro. E o que muito o impressionara na cidade foi a zona do mangue, o cheiro fétido, as prostitutas, o mercado do sexo, o atraso do capitalismo e os resquícios coloniais, contou a Rodolfo Coutinho. Ba, então, se chamava Nguên Ai Quôc, um codinome, e ajudava a articular, na Komintern, a seção do sudeste asiático.

Astrojildo Pereira logo regressou ao Brasil após a aceitação do PCB pela Komintern, mas sob a supervisão do PCA. Rodolfo Coutinho permaneceu em Moscou, a conviver, no mesmo quarto, com Ba ou Nguên Ai Quôc, cujo nome, na realidade, era Ho Chi Minh (1890- 1969), um nacionalista, determinado e com férrea perseverança, devotado inteiramente à revolução, para libertar o Vietnã, conforme descreveu o escritor Hoàng Văn Chí (1913-1988), autor da obra From Colonialism to Communism.

Fundadores do Partido Comunista -Seção Brasileira da Internacional Comunista (PC-SBIC): De pé, da esq. p/ dir.: Manoel Cendon, Joaquim Barbosa, Astrogildo Pereira, João da Costa Pimenta, Luís Peres e José Elias da Silva; sentados, da esq. p/ dir.: Hermogênio Silva, Abílio de Nequete e Cristiano Cordeiro.


Fonte do texto: Bandeira, Luiz Alberto Moniz. O ano vermelho: a revolução russa e seus reflexos no Brasil / Luiz Alberto Moniz Bandeira; colaboração Clóvis Melo; A. T. Andrade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. recurso digital (epud), pp.455-468.



 
 
 

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