Em resposta a Andrew Korybko por seu artigo sobre a Intentona Bolsonarista*.
- grupomonizbandeira
- 16 de jan. de 2023
- 31 min de leitura
*Artigo originalmente publicado com o título: "Não devemos tirar conclusões precipitadas sobre os acontecimentos de domingo no Brasil, e isso vale para todos, não apenas para a esquerda liberal — Em resposta a Andrew Korybko por seu artigo sobre a Intentona Bolsonarista no último domingo no Brasil."
Link para a publicação original: https://dialecticalnelson.medium.com/n%C3%A3o-devemos-tirar-conclus%C3%B5es-precipitadas-sobre-os-acontecimentos-de-domingo-no-brasil-e-isso-vale-24d5d7602760
Por: Daniel Albuquerque Abramo.
Em memória de Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira.

No domingo, eventos inusitados aconteceram em Brasília, capital do Brasil. Naturalmente, analistas e intelectuais de diversas partes do mundo se empenharam em tentar explicar esse fenômeno. Entre eles estava Andrew Korybko, notório analista político norte-americano radicado na Rússia, famoso em terras brasileiras por ser o autor do livro “Hybrid Wars: The Indirect Adaptive Approach To Regime Change”. Exatamente sobre isso, o presente texto pretende ser um comentário e uma contextualização sobre a análise de Korybko.
Em primeiro lugar, é importante frisar que este texto não trata de menosprezar o trabalho do meu colega de profissão, a quem respeito como intelectual. Tampouco é uma tentativa chauvinista de controlar a narrativa externa sobre o que está acontecendo em meu país.
Como falo da Rússia, China, Índia, África do Sul quase todos os dias da minha rotina e, como Korybko no caso do Brasil, não estou presente nesses países e não tenho todas as informações disponíveis, seria hipócrita atacar ou fazer algo assim com meu colega.
Evidentemente, é natural que haja algumas divergências entre nós neste assunto, já que represento o pensamento da esquerda radical brasileira anti-imperialista e, é natural que existam diferenças específicas na forma como observamos o fenômeno político. Mas, mais do que isso, neste caso, em particular, parece que exista uma imensa barreira cultural que impede a compreensão plena dos acontecimentos, devido à perda de muita informação relevante.
Além disso, ainda que o pensamento especulativo muitas vezes se mostre incorreto, é inegável que, mesmo no erro, podemos encontrar pontos positivos capazes de nos levar a algumas verdades pavorosas. Começaremos com algum contexto.
Introdução: Logo no início do texto de Korybko intitulado “Todo mundo deve ter cuidado antes de se apressar em julgar o que acabou de acontecer no Brasil.”, nos deparamos com o seguinte trecho em destaque que representa um resumo do que trata este artigo: “Longe de ser uma tentativa fracassada de “golpe fascista e terrorista”, parece convincentemente que a sequência de eventos de domingo foi artificialmente fabricada por meio de conluio entre os “Deep States” americanos e brasileiros, a fim de promover suas agendas ideológicas compartilhadas.” Assim, para reforçar o conselho do título do texto do Sr. Korybko, e para entender algumas nuances a respeito da afirmação destacada acima, antes de começarmos a comentar o próprio texto do Sr. Korybko, vamos iniciar uma contextualização sobre algumas camadas importantes da vida brasileira em sua relativamente história militar recente: Como todos sabemos, o Brasil é um país relativamente jovem, deixou de ser colônia e tornou-se independente há exatos 200 anos e só se tornou República em 1889. Este último acontecimento ocorreu após um processo exótico relacionado ao contexto externo, mas que, em resumo Reuniu os interesses do Exército Brasileiro — antes, não tão relevante como ator político, mas com enorme prestígio após a guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai — e os interesses das oligarquias, latifundiários regionais, que, na maioria, revoltaram-se com o imperador, devido ao fim da escravidão (embora uma parte menor deles fosse abolicionista e republicana) sem ver mais valor na existência do monarca. Se a única função do monarca nesse contexto era a preservação política da repugnante instituição da escravidão para o lucro dos latifundiários, então as “armas do império”, e quem financiava de fato essas “armas”, as oligarquias, não mais tinham necessidade de viver em uma Monarquia. É necessário apontar que o Exército Brasileiro era mais popular, mestiço e contava com muitos ex-escravos, e era muito menos racista que as oligarquias, que viviam e se beneficiavam da escravidão. A partir dessa aliança, que ainda existe, em certa medida, até hoje, a classe dominante brasileira e o Exército Brasileiro “disputavam projetos” logo no início da República brasileira. Na maioria das vezes, sem sair do escopo da aliança inicial. Ocorre que o exotismo da construção da república brasileira, como de algumas outras repúblicas latino-americanas e terceiro-mundistas, é que as Forças Armadas nunca necessariamente se entenderam como uma ferramenta da democracia burguesa, não importa que tipo de discurso tenham escolhido abraçar. — O ponto mais importante disso para resumir este debate em profundidade: Pela forma como foi fundada a República brasileira, como continuação do sistema Imperial em muitos aspectos (mas sem a figura do monarca), pelo caráter exótico da figura do antigo poder moderador do Monarca que estava presente na institucionalidade Imperial e a ausência de formalização desse poder, no novo sistema, acabou se gerando um vácuo, utilizado pelos militares, para se consolidar, desde o início do século XX, não apenas como parte do Estado como mero instrumento de defesa e repressão, como de costume, mas, sim, como atores políticos com sua própria agenda e seu próprio projeto de Brasil.
Pensando mais sobre isso na história brasileira:
Claro, isso teve aspectos positivos e negativos durante o século XX. Por exemplo, em 1922, um grupo de jovens tenentes se rebelou por causas populares. Em muitos casos, aliados a trabalhadores e sindicatos, que também defendiam uma agenda há algum tempo, muitos deles criaram comunas durante esse período. Tivemos até Luis Carlos Prestes, ainda militar naquela época, liderando uma marcha pelo interior, que mais tarde inspirou a “grande marcha” de Mao Zedong.
Esse período da história brasileira acabará desembocando no que chamamos de “Revolução de 30”. Um movimento político que rompe com esse sistema de república de fachada representado pela Primeira República brasileira. Não só isso, e mas tenta pela primeira vez na vida nacional, a partir de uma fusão sincrética de agendas dos grupos que o compunham, criar um ideal de república nacional-popular.
Já nesse período, começou a aparecer uma divisão de interesses entre diferentes grupos que participaram da Revolução de 30. Pior, as velhas oligarquias que não foram totalmente mortas da vida política, embora tenham perdido boa parte de seu poder no novo sistema, ainda estavam vivas. E novamente tivemos os militares como um dos atores que tentaram impor seu poder e conquistar a hegemonia do processo revolucionário. Muitos deles eram ex-tenentes, mas também, parte da própria estrutura militar que não foi totalmente alterada.
Durante a década de 1930, isso gerou um grande problema. Enquanto Getúlio Vargas negociava pragmaticamente com todos, e até incluía socialistas em seu governo, representando uma espécie de moderador entre os interesses das oligarquias, dos militares e da população, o mesmo postulava uma política externa de extrema neutralidade para barganhar uma melhor posição internacional para o Brasil e industrializar o país. Mas grande parte dos militares estava alinhada com o Eixo porque tinham relações com as indústrias Krupp e alguns deles eram integralistas (a estranha versão brasileira do fascismo). A burocracia civil e os movimentos operários estavam alinhados com os Aliados, alguns devido aos EUA, outros devido à URSS.
Após uma série de acontecimentos complexos, no início do período do Estado Novo, Getúlio sofre uma tentativa de golpe integralista. Foi uma tentativa de assalto à residência oficial do presidente com a intenção de assassinar Vargas. Esta tentativa de golpe, claro, foi facilitada por vários elementos das Forças Armadas que deixaram o presidente exposto e deliberadamente demoraram horas a vir em seu auxílio. Muitos especialistas afirmam sem medo que tal tentativa de golpe foi inteiramente planejada nos quartéis das Forças Armadas brasileiras [1]. No entanto, a tentativa de golpe integralista foi um fracasso e isso levou Vargas a ter hegemonia na sociedade para reprimir os mesmos integralistas.
Já na década de 40, após navios brasileiros serem atacados por submarinos alemães, o movimento de estudantes, trabalhadores, socialistas, burocracia civil e sociedade civil, influenciou profundamente o Brasil a entrar na Segunda Guerra Mundial contra o nazi-fascismo com o envio da Força Expedicionária Brasileira. Este é um momento chave para entendermos o que aconteceu e como os atores da história de ontem são muito parecidos com os atores dos últimos anos. Muitos dos escalões inferiores da estrutura militar brasileira que lutaram na Itália eram nacionalistas, socialistas e outros esquerdistas. Mas o topo da hierarquia mostrava “simpatia” pelo Eixo.
Durante essa experiência, oficiais de alto escalão foram profundamente influenciados pelo pessoal militar dos EUA. Ao retornarem ao Brasil, haviam deixado de ser simpatizantes do Eixo, e agora, no contexto da Guerra Fria, eram aliados e alinhados ideologicamente ao pensamento estratégico dos Estados Unidos para a América Latina. Pior, a partir daí começaram a construir uma nova doutrina militar, voltada para impedir revoluções, aplicando estratégias revolucionárias para realizar uma “contra-revolução”, como uma farsa protetiva. Esse é um ponto fundamental para entender, hoje, quem são os atores por trás da propaganda bolsonarista.
E de fato, a partir daí, em contato com as estruturas militares estadunidenses, militares brasileiros alinhados a este pensamento passaram a tutelar a república para uma posição forçada de alinhamento com os estadunidenses. Podemos citar como ocorrências diretas com a participação do mesmo grupo militar, o golpe sofrido por Vargas em 1945, os acontecimentos que culminaram em seu suicídio em 1954, a tentativa de impedir a cerimônia presidencial do presidente JK em 1956, a tentativa de impedir João Goulart desde que assumiu a presidência da república em 1962, até o fatídico golpe militar de 1964, que colocou essas “sombras” que já “governavam indiretamente em nome dos EUA”, no centro do poder de uma ditadura militar que duraria 21 anos.
Desnecessário dizer que um dos primeiros atos dessa ditadura foi um imenso expurgo das próprias Forças Armadas, consagrando a hegemonia ideológica do grupo alinhado aos EUA [2]. A partir daí, o Brasil deixou de ser um país em que as Forças Armadas acreditavam ter o direito de intervir na política, dependendo de sua correlação de forças internas, para um país em que as Forças Armadas acreditavam ter o direito de intervir, agora, sempre a favor de uma ideologia que compartilham com os militares norte-americanos e seu pensamento sobre o papel dos países latino-americanos durante a Guerra Fria. Desnecessário dizer que essa “troca de informações e treinamento” dos militares brasileiros perdura até hoje e não deixou de ocorrer mesmo após a ditadura militar [3].
Da redemocratização aos dias atuais: A redemocratização, por uma série de fatores internacionais e internos, ocorreu “de cima para baixo”, mesmo com intensa mobilização popular, ainda modulada da forma que os militares e seus aliados preferiram. No contexto internacional do “início do fim da Guerra Fria”, a redemocratização brasileira ocorreu de forma a preservar os militares e sua aliança com os latifundiários, configurando um novo sistema político civil, tutelado para caminhar em direção a uma posição política “liberal/ conservadora”pró-EUA. No entanto, os militares e a classe dominante brasileira e seus aliados internacionais não contavam com a força de nossa classe trabalhadora, organizada em dois grandes partidos de esquerda, PDT e PT, e em correntes e movimentos políticos sem partido e ainda muito influentes, como o Prestismo e o Maoísmo. A esquerda brasileira nesse período conseguiu realizar grandes protestos de massa, e mesmo não tendo poder real, conseguiu modular e transformar vários elementos na fundação da Nova República, principalmente seu mito e seus ideais. Esta é precisamente a contradição que resultou na luta política inicial que a Nova República experimentou em seu nascimento. Ainda existia a aliança entre as Forças Armadas, os Latifundiários, acrescidas da Burguesia Industrial. Tal aliança alcançou, naquele momento da história, um nível muito intenso de relações econômicas e políticas com o Ocidente geopolítico, especialmente entre os “países desenvolvidos”. No contexto internacional de crença no “Fim da História de Fukuyama” e “Um mundo sem fronteiras para o capital”, o capital financeiro tornou-se cada vez mais presente no cenário político brasileiro. Apesar disso, a cultura política tão bem construída e enraizada nos ideais da população desde a revolução de 1930, a ponto de se confundir com a própria identidade nacional brasileira, levou a esquerda do país sul-americano a se posicionar forte e enfaticamente contra o neoliberalismo e seus efeitos práticos e imediatos como privatizações. Exatamente por isso, o ex-presidente Collor não conseguiu implementar uma versão de neoliberalismo de extrema direita no Brasil. Mas a confusão ideológica, somada à criação da terceira via — neoliberalismo-progressista, social-liberalismo (como nos Democratas Norte-Americanos), digamos como preferirem — pegou a esquerda brasileira despreparada e desorganizada. Embora a esquerda radical tenha protestado contra as medidas de Fernando Henrique Cardoso, o credo neoliberal, é verdade, também se enraizou em parte da esquerda brasileira, especialmente em setores cosmopolitas da classe média. Mesmo assim, a esquerda clássica brasileira continuou com muito poder. Ainda que numa complexa relação de forças, onde Lula assinou uma carta de compromisso com o mercado e o establishment brasileiro [4], quando foi eleito em 2002, sua base mais exaltada era inequivocamente contra o neoliberalismo, em quaisquer que fossem suas versões. O governo, no entanto, teve que aderir ao mesmo quadro neoliberal de seu antecessor, relegando seu desenvolvimentismo econômico a apenas alguns segmentos muito específicos da economia brasileira. Devemos nos perguntar, que “sistema” Lula teve que saudar, como Galileu Galilei, para assumir a presidência? Claro, estamos falando de: Militares, Latifundiários e seus aliados internos e internacionais, agora com intensa presença do capital financeiro.
Sobre o partido dos trabalhadores e sua versão de neoliberalismo progressista (social liberalismo):
Ainda que limitadas e seguindo as condicionantes do sistema econômico implantado por seus antecessores, foram inegáveis as conquistas do Partido dos Trabalhadores em termos de obtenção de uma soberania nacional mínima, como a participação na fundação dos BRICS e a descoberta do pré-sal , um grande feito da engenharia.
É injusto não reconhecer que, embora capitulante e fraco, o Partido dos Trabalhadores estava, naquele momento, sob fogo, vaias, campanhas e ataques de toda a mídia tradicional, atiçado pelas oligarquias e pelos militares, pois assumiu o poder. Embora o autor deste texto faça parte de uma esquerda radical que sempre apontou os limites do liberalismo social, é impossível não mencionar algumas de suas peculiaridades no Brasil, pelo próprio desejo da classe trabalhadora brasileira, quer gostem ou não, a base eleitoral do projeto.
O Partido dos Trabalhadores no poder, como podemos ver em sua história, sempre teve isso como seu calcanhar de Aquiles, sempre teve graus variados de relacionamento com os EUA, mesmo que estivesse disposto a construir os BRICS. Obama disse que Lula era “o cara” e, ao mesmo tempo, seu governo desferiu um golpe em Dilma Roussef e participou ativamente da operação que prendeu Lula injustamente por desvio de finalidade [5].
Mesmo assim, é impossível não reconhecer alguns pontos importantes e distintos, como a participação do ministro das Relações Exteriores Celso Amorim, um dos maiores nomes dessa função desde o lendário Osvaldo Aranha, e do saudoso San Tiago Dantas, que lutou pelo movimento não-alinhado. O ex-ministro Amorim é, reconhecido entre todas as nações que lutam por um mundo multipolar, um dos nomes mais importantes para alcançarmos a inflexão internacional de tensão entre unipolaridade e multipolaridade que vemos hoje, e será o mentor da construção do A Política Externa Brasileira depois de 2022, seja no cargo ou não, disso podemos ter certeza.
O início de uma operação de “mudança de regime” dos EUA no Brasil e o período de intensa guerra psicológica contra o povo brasileiro:
Após a crise de 2008, a aliança que controla o poder no Brasil se viu em um impasse. O neoliberalismo progressista, que fazia concessões às causas sociais e mantinha a estrutura da legislação trabalhista e do setor elétrico brasileiro mais ou menos intacta, segundo os governantes e seus aliados internacionais, deve dar lugar a novos gestores. Isso ocorreu em um contexto em que, após a crise de 2008, com o crescimento acelerado da China, a Europa Ocidental e os grupos políticos e dominantes nos EUA precisariam compensar sua incapacidade e improdutividade diante do dragão asiático explorando seu notório quintal, América Latina.
Depois de alguns anos do que ficou conhecido como “Maré Rosa” na América Latina, golpes e eventos políticos sinistros surgiram em todo o continente. Enquanto isso, o Brasil vivia a esperança da ascensão, e tinha grandes eventos para sediar, a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, o que levou o Estado brasileiro a intensificar suas atividades de inteligência e vigilância contra sua própria população. Ao mesmo tempo, tornaram-se visíveis algumas contradições econômicas do neoliberalismo progressista com sua base política.
Uma das principais preocupações era o preço e a qualidade dos serviços públicos. Em junho de 2013, uma série de protestos estourou no Brasil. Inicialmente, orgânico e baseado nos limites do neoliberalismo [6].
O Brasil via emergir um mar de contradições e agendas, e seus atores dominantes na política, os Militares, Latifundiários e seus aliados políticos e econômicos nos países centrais, não se sentiam confiantes com o dirigente da época, o Partido dos Trabalhadores, na repressão de tamanha onda de revoltas. Viram nisso, porém, uma oportunidade de retirar os representantes do poder e reformar drasticamente o Estado brasileiro de acordo com o contexto internacional, ampliando a dependência econômica do Brasil do Ocidente geopolítico de tal forma que o alinhamento com eles fosse automático.
Nem é preciso dizer que os EUA, no governo Obama, com a participação efetiva de Biden, participaram ativamente no esforço ideológico por trás das manifestações, tanto por parte de uma esquerda liberal jacobina evidentemente artificial, quanto na criação de um eixo liberal/conservador no sistema político brasileiro. Foi aí que a grande mídia convencional, as redes sociais, os grandes players da internet, passaram a participar e estimular tais manifestações, agora com uma nova base social, muito mais ampla, despolitizada e reagindo aos estímulos da propaganda.
Iniciou-se um processo, que se consolidou a partir de 2016, de entrada em operação no Brasil de meios de comunicação estrangeiros, principalmente dos EUA e da Europa, algo que nunca havia sido permitido, em nome do monopólio nacional dos meios de telecomunicações e jornalismo. As “redes sociais” foram uma ferramenta central neste sentido.
As manifestações rapidamente adquiriram um caráter reacionário/hedonista e foram apropriadas como palco para atores com clara relação com os Estados Unidos, como é o caso do “Movimento Brasil Livre”, que claramente replica a política norte-americana e ali mantém relações escusas desde seu fundamento [7]. Algo visto anteriormente de forma muito semelhante, nos movimentos de massa de extrema direita que legitimaram a ditadura militar em 1964. Um dos maiores nomes do “Movimento Brasil Livre” na época uma das faces do impeachment de Dilma Rousseff, hoje, é, por exemplo, escandalosamente um interlocutor da Embaixada do Japão e dos interesses de grupos políticos japoneses ligados aos EUA no congresso brasileiro.
Cabe comentar também, o Lawfare protagonizado pelo ex-juiz golpista Sergio Moro, tem participação explícita dos EUA e seus atores. Como todos podemos lembrar, houve um escândalo em que os EUA espionaram a Petrobras e a presidente Dilma Roussef em 2013. Curiosamente, uma investigação foi iniciada por um juiz totalmente ligado aos EUA e que usou um método questionável, e obtém parte de suas informações precisamente dos EUA [8].
É escandaloso que seja muito provável na nossa cara que o estopim da “Operação Lava Jato” tenha surgido justamente desse ato de espionagem do governo Obama/Biden contra a líder do Partido dos Trabalhadores, Dilma Roussef, mas principalmente, contra a soberania brasileira . É importante observar que o juiz Sergio Moro, que está na política brasileira até hoje, e atualmente é senador da República, não é um operador do “trumpismo”, nem do “Partido Republicano”, suas relações se estendem ao Sistema Norte Americano de Justiça e o Departamento de Estado, e começou durante o governo Obama/Biden.
Além disso, é importante lembrar que a certa altura o Supremo Tribunal Federal passou a atuar de forma absolutamente política, deixando a constituição completamente de lado e valendo-se de uma lógica de populismo judicial, pautando-se no montante de apoio público que mede quanto , x ou y, de apoio é possível obter. Evidentemente, a mídia desempenhou um papel importante nesse mecanismo.
Longe de discussões infrutíferas e estúpidas entre demófobos e demófilos, houve um ímpeto verdadeiramente revolucionário em 2013, pós-crise, num vácuo de legitimidade pelos limites econômicos do neoliberalismo, mas mal aproveitado por uma juventude de esquerda desorganizada e ainda mal formada politicamente, que não soube aproveitar tal momento, e rejeitado pelo Partido dos Trabalhadores, que aderiu à posição de guardião do sistema rejeitado pelas massas.
Esse momento revolucionário foi melhor aproveitado pelos grandes atores como um momento de inflexão contra-revolucionária, como já vimos várias vezes na história, e o social-liberalismo foi negligenciado por seus aliados e fiadores porque, afinal, o Partido dos Trabalhadores, mesmo adaptando-se ao sistema das elites, sempre foi um intruso no clube dos ricos. Todos esses eventos culminaram na deposição da presidente Dilma Rousseff em 2016 e na prisão do ex-presidente Lula em 2018.
Sobre a participação dos militares na guerra de propaganda e na guerra psicológica:
Após 20 anos de silêncio, operando nas sombras, o oculto “Partido Militar” finalmente encontra uma oportunidade de se reinserir na vida política e se legitimar diante de um cenário de caos político na sociedade brasileira. A partir de 2014, era comum ver em programas de televisão e análises políticas em noticiários que a sociedade brasileira não se sentia bem representada nem pelo parlamento, nem pelo poder executivo, mas pelas Forças Armadas e pelo Supremo Tribunal Federal. Deve-se notar que ambos os atores mantiveram altos graus de relacionamento com a burocracia estatal norte-americana. Como veremos mais adiante, “os dois atores mais respeitados pela população no período de 2016” cooperam e se chocam inúmeras vezes daquela época até o presente momento.
A reinserção dos militares na vida política brasileira após a crise iniciada em 2013 foi muito bem documentada e analisada pela esquerda radical brasileira. Especialmente sobre isso, foi lançado o livro “Carta no Coturno”, de André Ortega e Pedro Marin, analisando os movimentos e choques que reintroduziram o partido militar oculto na vida política do país sul-americano [9]. Ambos foram, aliás, também, na época, colunistas e fundadores da revista que informou toda a esquerda radical brasileira sobre os desastrosos acontecimentos ocorridos na Ucrânia a partir de 2014, sendo inegável o paralelismo entre o fenômeno militarista no Brasil e na Ucrânia pós 2014.
Como na Ucrânia — onde um tenebroso grupo da história nacional, através do revisionismo, retorna como falsos mártires de um movimento de massas agressivo e propenso a levantes armados — uma ideologia muito específica surgiu aqui, desses militares brasileiros pró-eixo, e está se desdobrando no tempo , na extrema direita militar terrorista, como nos anos da ditadura militar brasileira. O Brasil é um país profundamente nacionalista em termos de identidade nacional, aliás, sempre teve uma tradição relevante de atores políticos antissistema, não é por acaso que o fenômeno nacional-popular da década de 1930 havia florescido. O fato é que esses atores antissistema costumavam ser da esquerda nacionalista e antiimperialista, não da extrema direita, que sempre foi o cão de guarda mais agressivo do establishment.
No novo sistema político, uma vez que o representante hegemônico da esquerda no governo, o Partido dos Trabalhadores, aderiu a uma posição vacilante e conciliadora, abdicando de capitalizar a retórica antissistema e, ao contrário, esteve sujeito a receber críticas de uma retórica antissistema. Esta foi uma oportunidade perfeita para atores como o “Movimento Brasil Livre” venderem seus pontos de vista como antissistema, mas nenhum ator soube aproveitar esse espaço e também o aparato propagandístico golpista das Forças Armadas e seus aliados econômicos internos.
Naturalmente, as Forças Armadas brasileiras, em contato com as Forças Armadas dos Estados Unidos, inclusive em operações de paz da ONU, já haviam entrado em contato com os pressupostos de uma operação de “Mudança de Regime”, e com a forma de fazer uma mudança de regime comumente conhecida como “Revolução Colorida”. Em um ambiente de intenso debate, apesar de certo descompasso tecnológico, até mesmo os reservistas debatiam tais temas, o que pode ser constatado em fóruns públicos de debate entre a categoria .
Munidos de um perfil de propaganda personalizado para as mesmas pessoas cuja ditadura militar havia educado entre 1964 e 1985, com o apoio dos latifundiários, as Forças Armadas conseguiram aproveitar todo esse ambiente para criar o impensável para a tola esquerda brasileira. Um novo movimento político que existe com o único objetivo de legitimar e convocar a intervenção militar na política. Aqui precisamos lembrar o que caracterizou a doutrina das Forças Armadas brasileiras, a noção de aplicar uma contra-revolução, simulando-a como uma revolução, para manter a ordem e suprimir qualquer mudança no Status-Quo que representa a aliança inicial do República, entre latifundiários e militares, e seus aliados.
E outra informação importante para entender toda essa história é: antes mesmo de existir o “Bolsonarismo”, já existia um grupo chamado “Intervencionistas”, cujo objetivo final é pedir “Intervenção Militar”, evidentemente, pessoas nostálgicas com memórias bem específicas do período da ditadura militar brasileira. Quem operou o aparato de propaganda responsável por isso? Toda a mídia brasileira, e até os políticos de esquerda, se empenharam em dizer, contra toda a experiência histórica: “nossos militares mudaram, agora são legalistas!”. A resolução e elucidação desta questão ficou para depois.
O surgimento do bizarro fenômeno político chamado Jair Bolsonaro ocorre significativamente após a criação de um campo militarista de extrema direita no Brasil no período pós-2013 [10]. Podemos dizer que Jair Bolsonaro foi o maior representante dessa tendência na política institucional, mas isso não diria muito, pois justamente ele acabou ficando nessa posição apenas como figura de proa de figuras que não poderiam ocupar o poder sem quebrar a constituição pela força de direito, os militares.
Bolsonaro antes de todo esse processo era um político de baixo escalão do submundo do Rio de Janeiro. Cresceu porque se associou à imagem das Forças Armadas, como era a intenção, representando uma fração muito mais agressiva do campo liberal/conservador criado pela atuação norte-americana na política brasileira, um novo campo próprio e representativo da das forças armadas. Nesse novo campo, personalidades como Olavo de Carvalho encontraram espaço para se tornarem seus intelectuais orgânicos e travar uma batalha cultural.
Neste ponto temos algo interessante que justifica o crescimento do olavismo neste campo político, as Forças Armadas optaram deliberadamente pela esquerda-liberal cosmopolita, [com uma prática semelhante à do Partido Democrata ou partidos de esquerda liberais nos países da Europa Ocidental, que tem conexões com uma certa parcela “progressista” do capital financeiro internacional, vulgo “dinheiro rosa”] como “bode expiatório” e inimigo preferencial para atacar enquanto acumula apoio e poder, ainda que se aliando contingentemente a outras forças liberais/conservadoras, visando disputar poder e tornar-se hegemônico na vida política brasileira com um movimento de massas agressivo e artificial. É importante entender que numa época em que a política identitária dominava a luta política brasileira, de esquerda e de direita, os militares também criavam sua própria identidade como crítica vulgar.
Como veremos a seguir, existem alguns eventos importantes para entender o que aconteceu no domingo, dia 8 de janeiro de 2023, em Brasília, que explicam e esclarecem muito mais sobre o ocorrido do que o ocorrido no Capitólio dos Estados Unidos. É significativo, porém, antes de qualquer consideração mais complexa, compreender que o Brasil é um país que há cerca de 10 anos vive uma intensa guerra de propaganda, guerra cultural, guerra ideológica e psicológica, dirigida a grupos específicos de nossa sociedade. O estresse gigante e a imensa tensão social neste raro exemplo em que a classe trabalhadora brasileira sofre um dos maiores ataques direcionados da história da humanidade, - com o objetivo de saquear todos os lucrativos bens públicos e o restante da soberania nacional do país latino-americano, com o consentimento dos militares, latifundiários, capital financeiro e todos os seus aliados no Ocidente geopolítico - não deve ser desconsiderado.
Deus está morto — em quem você pode confiar agora? Sobre o golpe de 2016 e um novo período de disputa pela hegemonia do poder no pós-golpe:
O golpe de 2016 contra a presidente Dilma Roussef foi legitimado no aparente binômio: mídia + movimentos de massa artificiais. Mas seria mentira não apontar que a participação das Forças Armadas e do Supremo Tribunal Federal foi escancarada nesse sentido. Não havia mais constituição, não havia mais lei, só havia força e poder, e isso era medido pelo número de pessoas que cada ator conseguia levar para as ruas, e o quanto elas eram radicalizadas.
O golpe de 2016 levou Michel Temer ao poder, e com ele uma agenda muito mais amigável aos EUA e à OTAN, e terrivelmente hostil à América Latina, e economicamente oportunista quanto aos BRICS. O golpe de 2016 foi legitimado diretamente nos EUA por senadores do partido de oposição que mais enfaticamente defendeu o golpe e que entrou em profunda crise após o ocorrido em 2016. Nenhum de nós, brasileiros ou analistas de política internacional, pode esquecer aquela bizarra orgia que constituiu a votação do impeachment da presidente Dilma Roussef. Já naquele momento, todos os atores envolvidos no golpe no Brasil já se encaminhavam para a batalha pela hegemonia do poder no pós-golpe.
Após o impeachment de Dilma Rousseff, Michel Temer mudou leis e normas para criar uma “anticonstituição” sob os escombros da constituição de 1988, muito semelhante ao que a Ditadura Militar fez para dar ares de legitimidade à sua brutalidade. Depois disso, tudo até agora sempre foi uma questão de poder, legitimidade moral e hegemonia na sociedade brasileira, expressa por meio de movimentos de massa.
O movimento liberal-conservador de marionetes dos Estados Unidos, “Movimento Brasil Livre”, perdeu muito de sua razão de ser, alguns de seus quadros entraram na política oficial a partir desse período, mas declinou profundamente como movimento de massas. Os lava-jatistas, cujo maior representante simbólico foi o juiz Sergio Moro, continuaram existindo e foram uma força política relevante, mas como movimento de massas acabaram decaindo, como a juventude liberal/conservadora fantoche dos EUA, e caindo sob a égide da tendência ideológica criada pelas Forças Armadas.
A esquerda liberal “jacobina”, nos moldes do Partido Democrata dos Estados Unidos, que sobrevive de uma curiosa relação com uma fração muito específica do capital financeiro nacional e internacional , não se tornou o agente subversivo que poderia ter se tornado em um país com tendências conservadoras governamentais hegemônicas. Nem essa tendência estranha ao nosso sistema político conseguiu formar um partido político próprio. A maior empreitada dessa linha, porém, foi tentar se infiltrar em partidos políticos já constituídos da esquerda brasileira e deslocar sua linha de pensamento e ideologia para uma posição mais favorável aos interesses continentais dos EUA e sua cosmovisão de política econômica .
Um fato muito marcante na política nacional foi a eleição de uma série de parlamentares financiados por bilionários e “fundações de renovação eleitoral” financiadas por fundos ocultos, que, na verdade, eram associações suprapartidárias cujo interesse era subverter partidos consolidados de dentro para fora [11] . Um símbolo disso foi Tábata Amaral, parlamentar de uma dessas organizações, eleita sob um discurso trabalhista brando em um partido tradicional de esquerda, que votou a favor de todas as medidas pavorosas do governo Temer contra o Brasil e os trabalhadores [12]. Um caso clássico de sabotagem interna, algo que provavelmente enfrentaremos muito no atual governo Lula.
Ao longo desse período, a tradicional esquerda brasileira, nacionalista e anti-imperialista, protestou e sofreu uma onda de repressão policial jamais vista na história brasileira recente [13]. Durante o governo Michel Temer, o aparato policial e as Forças Armadas foram usados contra a população sem a menor preocupação em escondê-lo. Há o famoso caso Balta Nunes, em que o agente de inteligência do exército espionava militantes de esquerda e marcava reuniões via APP Tinder para se infiltrar em manifestações e prender militantes que protestavam no período das Olimpíadas, durante o governo Temer [14].
Muita gente esquece, mas boa parte do governo Michel Temer foi marcado pelo uso intenso dos militares. Como, por exemplo, por ocasião do uso da Garantia da Lei e da Ordem na Cidade do Rio de Janeiro. Sob pretextos bastante questionáveis, tal uso da força militar, por lei própria, impediu que qualquer mudança constitucional fosse votada, e evitou que Temer perdesse algumas votações que poderiam reverter suas reformas naquele momento.
Ao mesmo tempo, as agências de aplicação da lei do estado foram benevolentes com os extremistas de direita. Prova disso é que em 2016 houve uma invasão, promovida pela mesma base social que cometeu os atos de vandalismo no domingo, dia 8 de janeiro de 2023, em Brasília. Invadiram a Câmara dos Deputados, com ajuda de seguranças, agrediram alguns parlamentares e assumiram a diretoria da Câmara Federal. Uma senhora que participava da selvageria na época disse:
“Sua segurança é ruim. Voltaremos um dia.” [15]
Tudo isso conspirou para que o movimento de massas da esquerda radical, hegemônico nas ruas brasileiras ao longo de sua história, fosse superado pelo grupo “verde e amarelo”, cuidadosamente criado pelas forças do establishment como uma “resposta brasileira” aos problemas e situação de caos social que o país atravessa desde 2013, impulsionado por esse mesmo establishment. Tudo isso permitido e legitimado pelo Supremo Tribunal Federal e por todos os atores do poder na República, especialmente pela mídia.
No entanto, havia uma figura política no Brasil capaz de assustar os militares e seu movimento de massas. Essa pessoa, e até nós, seus críticos como o autor deste texto, temos que admitir, era Luis Inácio Lula da Silva. Não porque Lula seja radical, não porque seja revolucionário, nada disso. Mas, porque sabem que Lula é o maior fenômeno político da história recente do Brasil e o único político atualmente capaz de emular a tradicional política brasileira de personalidades e carisma, e levar milhões de pessoas às ruas em sua defesa se ele quiser. Mesmo com todo esse cenário adverso para a esquerda descrito anteriormente, Lula continuou ganhando de Bolsonaro nas pesquisas, e de todos os atores que, de fato, estavam por baixo dos panos.
Justamente por isso, Lula foi preso injustamente e afastado do jogo em 2018. O imperialismo rejeita Lula, ainda que teatralmente o abrace para tirar fotos. Porque, ainda que Lula seja um conciliador, seu prestígio internacional exacerbado pode se tornar um problema diplomático, sobretudo porque pode provocar a união dos países da América Latina, num momento em que os EUA e a Europa Ocidental pretendiam saquear essa região e ainda se apresentam como mocinhos civilizando bárbaros.
Sem Lula na disputa eleitoral de 2018, com o Partido dos Trabalhadores tendo escolhido um candidato fraco, Fernando Haddad, e com Ciro Gomes, do PDT, tendo pouco espaço para crescer, Bolsonaro apareceu com força naquela corrida eleitoral. Representando uma coalizão de todos esses movimentos sob a égide do eixo militarista, acabou vencendo as eleições. É preciso destacar um uso inédito na história do Brasil da publicidade ilegal personalizada dirigida em massa, bem como a criação de um eixo totalmente paralelo da realidade brasileira.
É muito improvável que nossas Forças Armadas não tenham nada a ver com isso. Da mesma forma, também é importante lembrar que as Forças Armadas fiscalizaram todas as votações judiciais relativas à prisão de Lula, dando sua opinião, para efetivamente ameaçar o judiciário a cumprir sua vontade. Esse tipo de embate e queda de braço tem sido a tônica da participação dos militares na política desde sua reintrodução.
Jair Bolsonaro, um problema para alguns de seus criadores, uma benção para outros:
Os militares, os latifundiários, o capital financeiro e as corporações, e as potências estrangeiras foram, no fundo, os planejadores de tudo isso. Ainda assim, são os maiores candidatos a permanecer no poder se Lula não resolver esse problema rapidamente.
Eles sempre estiveram em uma condição que Sun Tzu descreveria como ideal em seus livros, uma condição em que a derrota é evitada por uma condição de ganha-ganha. Da mesma forma, colocam um “bode expiatório”, como Bolsonaro, ficam longe e se protegem.
Se ele seguisse o que eles queriam, ótimo, se não, eles o pressionavam e apareciam como salvadores. Isso aconteceu com Bolsonaro, mas tem a mesma lógica com os eventos dos eventos de domingo em Brasília, pois algumas pessoas na mídia brasileira já afirmam, com orgulho, que os militares provaram sua lealdade naquela data….
A maior falha desse plano foi esquecer que o fantoche tem vontade própria, alguns seguidores fanáticos e é louco.
E uma vez que ele percebeu sua própria insignificância, ele tentou fazer qualquer coisa maluca antes de deixar o poder, já que o caos sempre o interessou. No fundo, ele queria fazer crescer uma base orgânica que superasse a influência das próprias Forças Armadas no movimento de massas “verde e amarelo”. Isso aconteceu em diversas ocasiões, mas não foi algo fácil de sustentar. Bolsonaro sabia que ele mesmo levaria toda a culpa, como vemos materializado hoje, e não queria sofrer as consequências.
O problema era que, enquanto os militares, latifundiários e o capital internacional gostariam de um representante como um “novo Michel Temer”. Alguém que pudesse aprovar reformas econômicas ultraliberais, alinhar o Brasil com os EUA, alguém que usasse a força para reprimir protestos se necessário, mas mantendo um grau de teatralidade que não tornasse tão flagrante que o Brasil vivia um período excepcional. Exemplo disso foi a ascensão do ultraliberal, ligado ao capital financeiro, Paulo Guedes como ministro da Economia de Bolsonaro. Evidentemente um ponto de contato entre Bolsonaro e o mercado, bem como com a grande mídia, que sempre elogiou o sociopata Guedes como um “gênio da iniciativa privada”.
Essa pessoa desejada pela classe alta brasileira, infelizmente para a classe dominante, nunca foi Jair Bolsonaro, um completo elefante na sala de vidro. Por mais que o apoiassem, ele sempre foi insuficiente e incompetente para o projeto do establishment brasileiro. Bolsonaro, e especialmente os elementos olavistas no governo, chocaram essas expectativas. Se, por um lado, as Forças Armadas conseguiram consolidar seu retorno à vida pública, colocando-se como atores menos absurdos que o bolsonarismo e o olavismo, por outro lado, o exagero deste último provocou uma cisão de estratégias no bloco político da classe dominante.
Isso ficou evidente na condução da política internacional de Bolsonaro, não por sua submissão, necessária à concretização do projeto neoliberal, mas por sua incapacidade de passar despercebido, tornando-se sempre alvo fácil nas mãos de raposas maiores, fazendo com que as oligarquias perdessem dinheiro e influência internacional.
O olavismo e o bolsonarismo optaram por uma aliança tácita com o trumpismo, aderindo inclusive a uma postura agressiva contra a China. Outros elementos, principalmente ligados ao capital financeiro, à mídia, e elementos mais moderados da política brasileira ligados aos EUA, tiveram uma postura mais ligada ao Partido Democrata naquele período. A Suprema Corte assumiu uma postura inequivocamente anti-Trump, e nossos militares, como sempre, estavam dispostos a ter boas relações servis com os EUA, quem quer que fossem, mesmo que tivessem alguma simpatia pela retórica de Trump.
Em pouco tempo, muitos elementos que apoiavam a eleição de Bolsonaro, romperam com ele e com os militares e até abandonaram o governo, como no caso de Sergio Moro. Mas é preciso notar que a ideologia da Lava Jato representada por Moro, assim como o movimento fantoche norte-americano “Movimento Brasil Livre”, já havia sido engolida, canibalizada, pelo bolsonarismo e pelos militaristas como movimento de massas. A oposição deles a Bolsonaro e aos militares, ainda que pequena em certo ponto, só demonstra o quão irrelevantes eles se tornaram na disputa pelo poder.
Com isso, já se desenhava uma intensa divisão no bloco de poder no Brasil e em seus aliados internacionais. A pandemia, no entanto, foi um ponto de virada em tudo isso. A gestão do governo Bolsonaro, com atuação direta dos militares, foi um ponto chave para que de um lado tivéssemos:
Forças Armadas, latifundiários, oligarcas da mineração, uma fração da classe dominante brasileira que vive da superexploração da mão de obra e do solo, dos rios e das florestas brasileiras, e o capital internacional mais depredador, representado pelo movimento de massas “verde e amarelo” hegemonizado por sua ala militarista radical.
E do outro lado:
Um Supremo Tribunal Federal muito assustado com a sua falta de poderes reais, parte do capital financeiro “progressista”, meios de comunicação nacionais e internacionais, oligarcas ligados ao capital internacional, setores cosmopolitas da alta administração pública, que não eram representados por nenhum movimento de massas .
Porém, mesmo com toda a repressão, esforços de desarticulação, guerra psicológica, guerra de propaganda, revisão da legislação previdenciária e trabalhista, antiesquerdismo e anticomunismo, prisão de suas maiores lideranças, a esquerda brasileira e seu movimento de massas “vermelho” continuou a ser o único movimento de massas capaz de derrotar o movimento “verde e amarelo”. E, claro, Lula, mesmo na prisão, continuou sendo um animal político da maior envergadura, ainda que nunca tenha deixado de ser vacilante e conciliador mesmo estando preso injustamente.
Essa base não tinha conseguido libertar Lula, mas para falar a verdade, eles pressionaram o establishment e denunciaram a ilegalidade de sua prisão o tempo todo. Conseguindo, inclusive, reunir provas em um vazamento, que comprova a farsa do juiz Sergio Moro e colocou o Supremo Tribunal Federal em grande constrangimento. A esquerda brasileira também teve um papel importante durante a pandemia, defendendo o auxílio às famílias e outras medidas, algo que foi apropriado posteriormente por Bolsonaro, que foi contra o tempo todo.
Soltem o Kraken! — Lula está livre de novo: Esse grupo da classe dominante brasileira, claramente alinhado em valores e vínculos com o Partido Democrata dos Estados Unidos e um establishment progressista do capital financeiro internacional, percebeu que, na ausência de poder real, isto é, de armas, e de um movimento de massas para chamar de seu, precisaria fazer uma operação arriscada. Soltar Lula e erguê-lo contra seus oponentes comuns. Claro, isso seria embaraçoso. Os principais elementos desse grupo sustentaram toda a farsa judicial que perseguiu e prendeu Lula, assim como elementos dos EUA, do Partido Democrata, participaram e iniciaram todo esse processo de caos e loucura na vida pública brasileira há cerca de 10 anos, sempre contra a esquerda. Essa bizarra coalizão é exatamente a frente ampla que elegeu Lula à presidência do Brasil em 2022 contra Bolsonaro. E, todos sabem, de norte a sul, ela está propensa a golpes e traições contra o presidente Lula. De Lula, aquela fração da classe dominante só precisava de seu prestígio junto às classes populares para derrotar a outra fração da classe dominante que se apoiava no movimento artificial de massas, operado pelas Forças Armadas, que tinha Jair Bolsonaro como figura principal.
Finalmente, respondendo ao Sr. Andrew Korybko:
Após essa contextualização, tanto da história militar brasileira quanto da vida política brasileira desde 2013, fica mais simples analisar as falas do Sr. Andrew Korybko, destacadas no início deste texto. Quando o Sr. Korybko diz que:
“Longe de ser uma tentativa fracassada de “golpe fascista e terrorista”, parece convincentemente que a sequência de eventos de domingo foi artificialmente fabricada por meio de conluio entre os “Deep States” americanos e brasileiros, a fim de promover suas agendas ideológicas compartilhadas.”
Ele está cometendo pelo menos 3 erros por falta de alguma informação:
1: O uso do termo “Deep State” neste caso é uma saída retórica para explicar algo muito mais complexo e certamente pode nos levar a uma interpretação equivocada da situação. Como explicado anteriormente, há facções e grupos da classe dominante brasileira em clara disputa, ainda que ambos os grandes blocos tenham alto grau de relacionamento com os EUA.
O grupo da classe dominante que teve que se aliar a Lula, porém, não tem um movimento de massas para chamar de seu e ainda não conseguiu roubá-lo. Vive como um parasita e, por mais que tenha uma agenda política interna que compartilhe alguns valores com a agenda americana de Biden, ainda precisa responder aos desejos e estímulos da base eleitoral radical de esquerda e seu movimento de massas .
2: Houve uma tentativa de golpe de longo prazo, sendo operada, o objetivo não era só tomar Brasília, era só um ardil. O objetivo era demonstrar o quão fraco é o governo e iniciar um período de insurgência contra ele, levantando agressivamente o movimento de massas “verde e amarelo” contra o governo. Se você se entrar em qualquer grupo de propaganda militarista/bolsonarista, verá que eles propagam que pretendem “ucranizar” o Brasil.
É importante saber que Lula não escolheu seu ministro da Defesa, ele foi imposto pelos militares. Em algum momento da crise, as Forças Armadas enviaram ao Ministro da Defesa uma sugestão de que o governo aplicasse uma Garantia da Lei e da Ordem. Isso daria poder efetivo sobre a capital aos militares e encerraria prematuramente o governo Lula.
3: A sequência de eventos parece ter sido fabricada porque foi totalmente facilitada pelos militares, um de seus principais operadores, embora não o único. Com isso, finalmente se livram de Bolsonaro, que assumirá sozinho toda a culpa. E, simultaneamente, colocam o governo contra a parede. Incitam um movimento de massas contra o governo, enquanto tentam costurar um realinhamento com outros setores do establishment brasileiro, aliados de classe e parceiros internacionais de quem haviam se isolado de forma temporária e, simultaneamente, podem agora começar a buscar um novo representante mais competente que Bolsonaro para seu movimento político e de massas.
Por mais que houvesse informações de inteligência sobre o ocorrido e todo um plano para evitar qualquer dano, as Forças de Segurança se recusaram a seguir o plano do governo e de certa forma apoiaram os vândalos. A mesma prática já foi vista em motins policiais em todo o Brasil. Com isso, tentaram mostrar quem tem o verdadeiro poder na República.
A onipresente comparação com o evento do Capitólio nos EUA, presente na análise da grande mídia e na análise do próprio senhor Korybko, ilude e omite sobre a invasão do congresso brasileiro em 2016 por militaristas e outros eventos da realidade brasileira que foram uma preparação para o tipo de operação que observamos no domingo 01/08/2023. Tal comparação coloca em evidência Bolsonaro e sua relação com Trump, e convenientemente isenta e anistia as Forças Armadas brasileiras.
Além disso, a convergência entre Biden e Lula, falada por Korybko, é questionável. Por mais que o jogo de cena esteja feito, nenhum dos dois esqueceu tudo o que aconteceu no passado. Lula sabe muito bem que todos os elementos ligados aos Democratas e ao capital financeiro tentarão traí-lo. Podemos pensar que ele é tudo menos burro e inexperiente.
Justamente por isso, é particularmente incômodo para Lula saber que “o golpe não aconteceu porque os EUA não quiseram”, quando ele sabe muito bem que os verdadeiros planejadores do golpe estarão aqui no Brasil, pelos próximos 4 anos. Porque isso implica saber que se o governo dos Estados Unidos mudar de ideia, tal golpe aconteceria. Isso soa, como o Sr. Korybko pode ver, muito mais como uma ameaça do que uma oferta de um possível alinhamento futuro ao nível interno. Não é?
A maioria do que poderíamos acreditar ser tal convergência é mais superficial do que real, basta olhar para o tipo de aliado que Biden tem na América Latina no momento. O governo golpista no Peru está matando muita gente, da mesma forma que o governo golpista que assolou a Bolívia por algum tempo, com o consentimento dos EUA, também foi brutal e violento. Evo Morales, recentemente golpeado pelos EUA, quando foi falar sobre o que aconteceu em Brasília, foi direto. Ele disse ter certeza de que foi algo operado pelos Estados Unidos, contra Lula, para minar a unidade latino-americana.
Por que isso? Porque mesmo que haja uma convergência superficial entre Biden e Lula em uma luta solidária contra o trumpismo e o bolsonarismo na política doméstica, no final das contas, Biden ainda quer, como qualquer líder dos EUA, recolonizar a América Latina. No final das contas, com todo o discurso ideológico, quem ajudaria mais o governo Biden a derrubar Maduro, Bolsonaro ou Lula?
O Sr. Korybko está certo ao apontar o grande poder acumulado por Alexandre de Moraes, mas mesmo assim, ele está apenas meio certo em seus pensamentos. Alexandre de Moraes certamente está usando mais poder do que deveria ou poderia. Mas isso fica mais ou menos óbvio já que todo esse poder foi usado por cerca de 10 anos contra a esquerda, e agora é usado para uma correção de rumo, quando o establishment percebeu que iria se autodestruir. Como foi explicado neste texto anteriormente, não existe lei desde 2016. O que choca os brasileiros, não é a quantidade de poder investido por Alexandre de Moraes, mas contra quem, pela primeira vez, é usado: um alvo correto. Ainda que, todos saibamos, que sim, ele irá usar todo esse poder contra nós, novamente, assim que puder.
Enquanto isso, enquanto militares, latifundiários, capital internacional, judiciário, Democratas e Republicanos reorganizam seus interesses no Brasil, surge uma oportunidade para Lula e o governo. Essa possibilidade não foi cogitada por Korybko, mas é a perseguida pela esquerda brasileira.
A possibilidade de Lula assumir o papel de Alexandre de Moraes e do STF como líder e rosto do movimento público “anti-bolsonaro” e usar isso contra seus adversários políticos internos, e fazê-lo legitimamente. Nos últimos dias, Lula já fez declarações de que sabe da participação dos militares e pede sua punição. Algo como um bonapartismo executado na história brasileira anteriormente por Getúlio Vargas, justamente após o fracassado golpe integralista de 1938, concebido, planejado e organizado pelos militares, e executado de forma terceirizada pelos fascistas.
Se Lula chegar a essa posição, com o apoio de (e impulsionado por) um sólido movimento de massas, poderá finalmente iniciar um expurgo nas Forças Armadas. Isso seria fundamental para resgatar a soberania brasileira. Com isso, Lula e o governo também teriam poder para desarmar a bomba gestada no judiciário e no STF, e conseguiriam passar seus 4 anos vivos sem sofrer golpe de Estado e sem ter que abaixar a cabeça para os EUA, ainda que o interesse da maioria dos atores políticos que o elegeram seja trair Lula e tomar o poder.
Como podemos ver ao longo do texto, tudo depende de quão fortes os movimentos de massa a favor de Lula conseguirão se posicionar a partir de agora e se o governo terá coragem de fazer as reformas populares que a economia e a sociedade brasileira precisam. Sabemos que, esse não é o perfil de Lula. Mas não se trata mais de questão de gosto pessoal, e sim de sobrevivência.
Bibliografia:
Moniz Bandeira — Presença dos EUA no Brasil.
Moniz Bandeira — Trabalhismo e Socialismo no Brasil.
Moniz Bandeira — Desordem Mundial.
Moniz Bandeira — A Segunda Guerra Fria.
Moniz Bandeira — Formação do Império Americano.
André Ortega e Pedro Marin — Carta no Coturno.
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