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CRÍTICA DE ROSA LUXEMBURGO À POLÍTICA DAS NACIONALIDADES DE LENIN (Por Moniz Bandeira)

  • grupomonizbandeira
  • 15 de fev. de 2022
  • 6 min de leitura

Atualizado: 16 de fev. de 2022

Iniciámos através dessa publicação uma série de trechos da última obra de Luiz Alberto Moniz Bandeira: "A desordem mundial: : o espectro da total dominação: guerras por procuração, terror, caos e catástrofes humanitárias" (2016) referentes a questão da Ucrânia.


Trecho: MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto, “A desordem mundial: O espectro da total dominação. Guerras pro procuração, terror e catástrofes humanitárias”, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, pp.221-224.

Berlim 1968, protestos contra o Vietnã, Fonte: ROGGE/ ULLSTEIN BILD (GETTY IMAGES).


"Rosa Luxemburg (1871–1919), cujo contributo à teoria econômica de Marx e Engels foi dos mais importantes, saudou a Revolução Russa como “das gewaltigste Faktum” (o mais poderoso factum) da grande guerra de 1914–1918, 1 porém aportou severas críticas aos métodos e iniciativas de Lenin e Trotsky, em texto escrito, entre agosto e setembro de 1918, ainda na prisão de Breslau (Alemanha), da qual saiu em 18 de novembro, véspera da abdicação do Kaiser Wilhelm II. Uma de suas discordâncias foi quanto ao direito de autodeterminação das nacionalidades, que compunham a população da Rússia, desde muitos séculos, e, referindo-se, especialmente, ao “tolo nacionalismo ucraniano” (die Narretein des “ukrainschen Nationalismus”), ressaltou que antes de uma “Ucrânia independente” (selbständige Ukraine) haver sido inventada pelo “hobby de Lenin” (Steckenpferd Lenins), a Ucrânia fora o centro, a fortaleza do movimento revolucionário da Rússia. 2 De lá, de Rostov, de Odessa, da região de Donetz — lembrou Rosa Luxemburg — fluíram as torrentes de lava que lançaram o sul da Rússia, já em 1902–1904, em um mar de chamas, assim preparando a insurreição de 1905. 3 O mesmo aconteceu na revolução de 1917, pois o proletariado da Rússia meridional forneceu as tropas de elite das falanges proletárias (die Elitentruppen der proletarischen Phalanx stellte). 4

A afirmar que os bolcheviques, com o princípio da autodeterminação das nacionalidades, propiciaram a ideologia que mascarava a contrarrevolução, fortalecendo a posição da pequena burguesia e enfraquecendo o proletariado, Rosa Luxemburg previu que a Ucrânia assim desempenharia um “papel fatal” (fatale Role) no destino da revolução russa. Seu nacionalismo — argumentou — era bastante diferente, e.g., do nacionalismo tcheco, polonês ou finlandês, dado representar mera extravagância, empáfia de uma dúzia da intelligentsia pequeno-burguesa, sem a mínima raiz na situação econômica, política ou espiritual da terra, sem qualquer tradição histórica, porque a Ucrânia, povoada por uma minoria de 7 milhões de pessoas, 5 nunca constituiu uma nação ou um Estado, e sem nenhuma cultura nacional, exceto as poesias romântico-reacionárias de Schewtschenko. 6

Rosa Luxemburg acusou Lenin e seus companheiros de inflarem, artificialmente, essa “farsa burlesca” (diese lächerliche Posse) de um par de professores universitários e estudantes, ao nível de um fator político, com a agitação da doutrina sobre o direito à autodeterminação, até o ponto de convertê-la em fanfarronada sangrenta e bandeira de reunião dos contrarrevolucionários. 7 O mesmo conceito Rosa Luxemburg repetiu em outro texto — “Fragment über Krieg, nationale Frage und Revolution” — no qual observou que o nacionalismo na Ucrânia russa, até a revolução bolchevique, em outubro de 1917, nada representava, era bolha de sabão, vaidade de uma dúzia de professores e advogados, cuja maioria nem mesmo ucraniano podia ler. 8 Ela entendia que Lenin devia manter a integridade territorial do Império Russo sob a égide da revolução socialista.

Lenin sustentou a decisão de conceder a autodeterminação às nacionalidades. Em 10 de março de 1919, o 3° Congresso dos Sovietes da Ucrânia mudou o nome da República Soviética do Povo Ucraniano (1917–1918), com a capital em Kharkov (Khirkiv), para República Socialista Soviética da Ucrânia, que se tornou tecnicamente um Estado independente, com seu próprio governo, 9 enquanto a República Popular da Ucrânia Ocidental, que existiu na Galitzia, entre fins de 1918 e começo de 1919, se fundia com a República Nacional da Ucrânia sob o nome de República Popular da Ucrânia (Zapadnoukrajinska Narodna Republika), com apenas 4 milhões de habitantes, sob o comando do nacionalista Symon Petlyura (1879–1926), que continuou a guerra contra o Exército Vermelho, apoiado por forças da Polônia, sob a ditadura do marechal Józef Klemens Piłsudski (1867–1935).

Como Rosa Luxemburg previu, a perspectiva de reconhecimento da autodeterminação das nacionalidades despedaçou a Ucrânia em pretensas pequenas repúblicas de tendências diferentes, em meio a sublevações de camponeses, cossacos chefiados pelo atamán Alexei M. Kaledin (1861–1918) 10 e operários, enquanto sangrentos pogroms ocorriam em todas as cidades. Em 15 de fevereiro de 1919 foram exterminados 1.700 judeus — homens, mulheres e crianças —, e, no dia seguinte, mais 600. 11 Os atamáns (warlords) cossacos do Don, Angell, Kazakov, Kozyr-Zyrko, Struk, Volynets, Zeleny, Tutunik, Shepel e Grigoryev, com cavalarias, pilharam, torturaram, estupraram e massacraram 6.000 judeus em meados de 1919. A palavra de ordem da contrarrevolução era: “Ataque os judeus e salve a Rússia.” 12 Estima-se que os atamans, as forças nacionalistas sob o comando de Simon Petlyura, 13 à frente da Rada Central, instituída em Kiev, bem como o Exército Branco, contrarrevolucionário, do general Antón I. Denikin, cuja coluna dorsal foram os cossacos de Kuban (Kubanskiye Kаzaki), realizaram 1.236 pogroms, entre 1917 e 1921, em mais de 524 localidades da Ucrânia, sobretudo no leste, e liquidaram entre 30.000 e 60.000 judeus. 14 Outras fontes estimam que aproximadamente 150.000 judeus (125.000 na Ucrânia, 25.000 na Bielorrússia) foram aniquilados entre 1918 e 1922. 15 As matanças perpetradas pelas forças contrarrevolucionárias estenderam-se à Bielorrússia e até o norte do Cáucaso, Sibéria e Mongólia. E os judeus procuravam a proteção do Exército Vermelho. 16

Entre 13 de junho de 1920 e março de 1921, o Exército Vermelho, com cerca de 3,5 milhões de efetivos, muito bem organizados e disciplinados, sob o comando do general Mikhail N. Tukhachevsky (1893–1937), cercou e capturou Kiev, então dominada pelas forças de Józef Pilsudisky (1867–1935), ditador da Polônia, que reconheceu a soberania da Rússia sobre toda a Ucrânia até Donbass e a Bielorrússia, ao celebrar o Tratado de Riga (1921), terminando a guerra. E, em 30 de dezembro de 1922, a Ucrânia, ainda a padecer da devastação causada pela guerra civil e assolada pela fome, somou-se como Estado, denominado República Soviética Socialista, às Repúblicas Soviéticas da Rússia, Bielorrússia e Transcaucásia, na formação da União Soviética. O governo então lhe transferiu a região da Novorossiisk, que se estendia sobre Kharkov, Donetsk, Luhansk, Zaporizhia, Kherson, Dnepropetrovsk, Mykolaiv e Odessa, região onde enorme parte dos habitantes era russa ou de origem russa. O objetivo do governo bolchevique, ao transferir-lhe a Novorossiya, uma zona mais industrializada, foi, ao que consta, equilibrar o poder na nova república soviética, com maior número de operários, dado que o oeste, à margem direita do Dnieper, era predominantemente rural e os camponeses e setores nacionalistas pequeno-burgueses lá prevaleciam.

As fronteiras da República Soviética Socialista da Ucrânia não se estendiam à península da Crimeia, cuja população era, àquele tempo, de 623.000 habitantes, dos quais 150.000 tatars, que se consideravam seus primeiros habitantes (korenni narod). Em 1921–1922, a península foi bastante afetada pela fome e a população decresceu algo em torno de 21%. 17 Cerca de 100.000 pessoas, das quais 60.000 eram tatars, pereceram famintas e mais de 50.000 escaparam para a Romênia. Muitos depois regressaram e, entre 1925 e 1927, estabeleceram duas dezenas de assentamentos e vilas na península. E, segundo o censo da União Soviética, em 1939, 218.179 tatars viviam na Crimeia. Esse número caiu, no entanto, para 165.259, em 1953, em virtude das remoções em massa para o Cazaquistão, Ásia Central, Urais e Sibéria, ordenadas por Stalin entre 1943 e 1945, 18 não obstante desfrutarem de autonomia cultural (korenzatsiia), assegurada pela política de respeito às nacionalidades, desde que Lenin e os bolcheviques assumiram o poder em 1917. 19 Após o Pacto Molotov-Ribbentrop (23 de agosto de 1939), mediante o qual a União Soviética e a Alemanha a repartiram, invadiram e anexaram as partes da Polônia, a Ucrânia recebeu da Romênia a região da Bessarábia, o nordeste de Bukovina e a região de Hertza, assim como reincorporou ao seu território a Galitzia e Volhnia (Lodomeria-Volodymyr-Volynsky/ Vo-Lodymer)."


NOTAS

1. Rosa Luxemburg, 1990, Band 4, p. 355; Hiroaki Kuromiya, 1998, p. 42.

2. Rosa Luxemburg, 1990, Band 4, p. 350.

3. Ibidem, p. 350.

4. Ibidem, p. 350.

5. Paul Kubicec, 2008, p. 91.

6. Rosa Luxemburg, 1990, Band 4, p. 351. Taras Hryhorowytsch Schewtschenko (1814–1861) foi um poeta cuja obra foi escrita na língua ucraniana.

7. Ibidem.

8. Rosa Luxemburg, “Fragment über Krieg, nationale Frage um Revolution”. Ibidem, p. 369.

9. Paul Kubicec, 2008, p. 90.

10. Peter Kenez, 1977, pp. 162–163.

11. Paulo R. Magocsi, 2010 pp. 506–507.

12. Louis Rapoport, 1999, pp. 14–15; Hanoch Teller, 1990, p. 314.

13. Em 1926, exilado em Paris, Simon Petlyura, chefe do governo da República Popular da Ucrânia, considerado o maior responsável pelos massacres em larga escala, foi executado pelo anarquista judeu Sholem Schwartzbard (1886–1938). Schwartzbard foi preso, julgado e absolvido pelo júri popular. Faleceu em Kapstatd, na África do Sul, doze anos depois; Paul Kubicek, 2008, p. 89.

14. Ibidem, pp. 506–507. Modern Jewish History: Pogroms. Jewish Virtual Library. 2a ed., pp. 71–73. Disponível em .

15. Nicolas Werth, “Crimes and Mass Violence of the Russian Civil Wars (1918–1921)”. Online Encyclopedia of Mass Violence® — ISSN 1961–9898. 3 de abril de 2008 Disponível em .

16. Louis Rapoport, 1999, p. 15.

17. Alan W. Fisher, 1978, pp. 37–38.

18. Ibidem, p. 151.

19. Otto Pohl, J. “The Deportation and Fate of the Crimean Tatars”. International Committee for Crimea. Washington, DC, 2003. Esse paper foi apresentado na 5th Annual World Convention of the Association for the Study of Nationalities: “Identity and the State: Nationalism and Sovereignty in a Changing World”. Nova York: Columbia University, 13–15 de abril de 2000, Foi parte do painel “A Nation Exiled: The Crimean Tatars in the Russian Empire, Central Asia, and Turkey.” Disponível em .

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