Algumas reflexões sobre a importância do 5 de Julho para a História do Brasil e o Socialismo
- grupomonizbandeira
- 11 de jul. de 2023
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Por Gustavo Santos*

Carecemos com premência da democracia. Mas de uma democracia que não seja o tumulo do socialismo proletário e dos sonhos de igualdade com liberdade e felicidade dos trabalhadores e oprimidos. (Florestan Fernandes, Democracia e Socialismo, 1989)
1- O Levante dos 18 do Forte de Copacabana (05/07/1922) pode ser considerado um marco disruptivo nos caminhos do desenvolvimento histórico do país. Aqui a Revolução Brasileira até então fragmentada e desconexa em rebeliões regionalizadas (Guerras Guaraníticas, Guerra dos Palmares, Revolução Pernambucana, Rebelião dos Malês, Sabinada, Cabanagem, Balaiada, Revolução Praieira, Guerra de Canudos, Guerra do Contestado, Rebelião da Chibata, etc) passa a ganhar contorno e direcionamento verdadeiramente nacional, ainda que em primeiro momento sob um viés moral e pequeno burguês (contra a fraude eleitoral e restabelecimento do protagonismo das forças armadas).
2- Decorrente dos efeitos de um intento revolucionário em plena Capital da República (sem olvidar do levante anarquista de 1918, o soviete do Rio), abriu um espaço para a crítica dos rumos da nação, entravado até então pela face conservadora das duas primeiras formas republicanas que sucederam ao golpe militar de 1889: a República da Espada (1889-1894) e a República Oligárquica (1894-1930). Duas configurações de Estado que expressaram a manutenção do poder pelos setores mais reacionários da economia brasileira após a falência histórica das relações de produção escravistas e o enquadramento do Brasil na condição coadjuvante do mercado mundial agora em sua forma imperialista, significando um momento de readequação latifundiária.
Se do ponto de vista da intelectualidade, desde a segunda metade do século XIX já havia um movimento de “Descoberta do Brasil” com Abreu e Lima, Tobias Barreto, Silvio
Romero, Nina Rodrigues, Manuel Querino, Oliveira Vianna, Manoel Bomfim, Euclides da Cunha, Capistrano de Abreu e Oliveira Lima, Somente depois de 1922 podemos falar de uma “Descoberta do Brasil” desde um movimento político: o Tenentismo. Esse fenômeno através de sua expressão mais alta, a Coluna Prestes (1924-1927), desbravou o Brasil e fez a real cartografia de seus problemas, integrando pela primeira vez os problemas da população submetida ao latifúndio (maioria absoluta) aos movimentos políticos dos setores médios inconformados e ao incipiente proletariado urbano. Último setor esse que foi exacerbado em peso pela historiografia “paulistocrêntrica" escrita ao largo do século XX.
3- A Coluna Prestes (1924-1927) na condição demais extraordinário movimento de contestação a dominação oligárquica na Primeira República (simplesmente a maior marcha militar da História) ditou os rumos e as diversas linhas de embates que somente se resolveriam com o golpe empresarial-militar de 1964 e sua opção pelo subimperialismo dependente calcado na modalidade monopólica de associação entre Estado, agentes privados de vinculo estreito com a ditadura e o capital estrangeiro, onde a burguesia brasileira se mantinha na condição de sócio menor.
Da Coluna Heroica surgiram tanto figuras como Luiz Carlos Prestes, principal referencial popular e revolucionário do Brasil até a segunda metade do século XX, como os militares que optaram por uma modernização conservadora e filo-fascista (Eduardo Gomes, Juarez Távora, Costa e Silva, Filinto Müller, e outros), que em primeiro momento foram tragados à Revolução de 1930 e depois passaram paulatinamente a se descolar de Vargas a partir do Golpe do Estado Novo (1937), a medida que Vargas guinava da extrema direita em direção a um nacionalismo popular. Esses setores iriam compor o bloco histórico destinado a derrotar as reivindicações democráticas populares sendo artífices de movimentos reacionários como a derrubada de Vargas em 1945, a Cruzada Democrática, as tentativas de golpe em 1955 e 1961 e finalmente a Contrarrevolução de 1964. Aqui, é importante ressaltar a figura de Prestes, não por culto a personalidade, mas porque devemos ter a clareza que o Partido Comunista do Brasil (PCB) só teve centralidade política na vida brasileira, como nenhum outro PC na América Latina teve, devido a adesão da figura heroica de Prestes em 1930, no qual grande parte daqueles que se filiavam ao PC se decidiam assim muito mais pela referência no Cavaleiro da Esperança, que por qualquer convicção na filosofia de Marx, Engels, Lenin e Stalin.
4- Nesse espectro, a insurreição de 1935 não deve ser limitada como um levante fracassado, inclusive porque o governo revolucionário instaurado no Rio Grande Norte é para nós a nossa Comuna de “Paris”, e tampouco, podemos resumir os resultados de 1935 nos nove anos de amargura carcerária de Prestes, na deportação de Olga Benário para ser assassinada na Alemanha Nazista por ordens de Getúlio Vargas e conivência do Supremo Tribunal, e nas centenas de aliancistas que sofreram torturas e assassinatos, embora, jamais devamos esquecer-se desses crimes. Como salto qualitativo no processo histórico brasileiro, 1935 também resultou nos movimentos democráticos que já começariam a reaparecer por volta de 1941 com a invasão da URSS pela Alemanha hitlerista, e que desencadearam nas campanhas que levaram o Brasil à Guerra, na constituição da Força Expedicionária Brasileira (FEB), na consolidação de barganhas industriais que fundariam a industrialização no setor pesado, além de que a campanha pela anistia dos presos políticos daria o ingrediente social para a Assembleia Constituinte de 1946. Quer dizer que a luta de classes expressas pelo levante de 1935 e o programa da Aliança Nacional Libertadora, permitiria que entre 1942-1945 o Estado Novo mudasse sua fisionomia por meio mobilização democrática popular e pela tempestade vermelha nos campos de batalha na Europa. Assim, 1935 ecoou até a derrota de 1964, onde o programa “nacional libertador” se fez presente em maior ou menor medida no queremismo e na campanha pela constituição do monopólio estatal do petróleo, no principal período de mobilizações e lutas sindicais e rurais (Ligas Camponesas) da história do país, num reflorescimento do debate ideológico acerca do caráter da Revolução Brasileira, expresso principalmente pelo ISEB, pela CEPAL e pelas vertentes da teoria da dependência, e também nas reformas de base e na política externa independente.
5- Sem os movimentos iniciados em 5 de julho de 1922 em Copacabana, o Brasil não teria alçado passos importantes (ainda que incompletos) nos rumos de seu desenvolvimento econômico, que possibilitaram posicionar o país na condição de terceiro ator estatal no mundo com maior crescimento econômico continuo no período de 1930-1980. Embora, a ruptura histórica de 1964 excluísse o povo da equação desenvolvimentista, quando a associação dependente pós-guerra já limitava os benefícios gerais para a nação e conclamava à uma ruptura socialista, pois, a partir de 1964 a política de corte subimperialista substituiu o tradicional modelo de substituição de importações calcado em tarifas, instrumentos cambiais e crédito pela unificação das taxas de câmbio, rebaixamento de impostos, redirecionamento do crédito estatal, modificação da política de preços, o endividamento interno e externo e a política exterior da exportação da contrarrevolução na vizinhança (Ruy Mauro Marini, Transición y crisis en Brasil, 1992).
Embora assim, apesar de desenvolver seu subdesenvolvimento, esse procedimento permitiu que o Brasil se enquadrasse num grupo restrito de países latino-americanos (junto com Argentina e México) que conseguiram um pujante acumulo de capital, um processo de urbanização desigual e marginalizante, e um médio peso industrial que permitiram que o Brasil se colocasse na condição de primeira economia da região e que autoriza hoje que se imponha como agente importante da política internacional.
6- Por fim, é importante ressaltar que os 5 de Julho de 1922, de 1924 e de 1935 foram movimentos de cortes disruptivos, tal como a Revolução de 1930 também foi, e justamente pelo caráter de questionamento de uma ordem estabelecida e o assalto ao poder constituindo uma ordem burguesa de outro tipo: uma aliança horizontal entre indústria e latifúndio, com benefícios ao proletariado urbano (minoria laboral), pôde Getúlio Vargas implementar seu programa de fundo, ainda incomparável em alcance com qualquer outro programa de transformação econômica e social dentro do período republicano do país. Hoje existem “comunistas” que falam em tomar o exemplo da China sem discutir a questão do poder político, e logo dispensam a complexa dialética leninista entre Partido de vanguarda e o movimento massas. Esquecem eles que países como Irã, Rússia e a China podem promover as transformações que fazem porque inauguraram configurações políticas de outro tipo, diferentes e superiores à “democracia liberal”. Esses países fizeram revoluções e construíram sistemas adequados para suas realidades nacionais.
Desse modo, para projetar-se como liderança regional e multipolar, dominar o topo da revolução científico técnica e orientar sua produção para mercadorias com alto valor agregado, resultando em salários robustos e bens públicos de qualidade, é necessário que se retome a discussão sobre a Revolução Brasileira em seu real caráter, o caráter socialista conforme as condições históricas e sociais brasileiras, que se formule um programa estratégico capaz de inverter a lógica do valor de troca pelo imperativo do valor de uso segundo qual as necessidades do estomago e do cérebro do povo brasileiro. Pois, também a história (mais uma vez ela) nos ensinou (ou deveria ter ensinado) em vários capítulos que conformam nossa situação que mesmo governos que foram o mais longe possível nas reformas estruturais, mas que não almejaram modificar o bloco histórico hegemônico e sua expressão de Estado, nem superar sua subjetividade ética e moral anárquica e individualista, por uma ética e uma moral superior e radicalmente humanista, que estimulasse a consciência crítica exigida para a superação da dependência e do subdesenvolvimento e a superação do trabalho alienado e dos diversos fetichismos do capital, acabaram por tornar às conquistas populares facilmente reversíveis pela mudança de um governo de turno, tal como foi recentemente com o golpe parlamentar-jurídico-midiático que depôs Dilma Rousseff em 2016, onde em treze anos de conquistas populares nada foi criado para forjar uma nova subjetividade de luta, tornando esse governo alvo fácil do ponto de vista ideológico, quando o proletariado agora era propagado como uma “nova classe média”.
Os três momentos revolucionários desencadeados nos 5 de Julho de 1922, de 1924 e 1935 provam na história que somente pelo questionamento da ordem dada se realizam saltos qualitativos na história. Desde o final de 1970 se impôs na esquerda uma derrota ideológica decorrente de um processo eurocêntrico que funda o paradigma da “democracia como valor universal”, a defesa da institucionalismo burguês como algo inquestionável, onde o pensamento dialético é obliterado sobre uma falsa disjuntiva entre “democracia ou fascismo”, esquecendo que “La democracia implica desigualdad en el plano de la toma de decisiones y conlleva necesariamente un modo de dominación. La especificidad de la democracia socialista reside en que la dominación tiende a ejercerse predominantemente mediante la persuasión y no por la coerción.” ( Ruy Mauro Marini, Dos notas sobre el socialismo, 1993) e que na “luta pela democracia em nossa Terra como parte integrante da luta pelo socialismo. É no processo de mobilização pela conquista de objetivos democráticos parciais, incluindo as reivindicações não apenas políticas, mas também econômicas e sociais, que as massas tomam consciência dos limites do capitalismo e da necessidade de avançar para formas cada vez mais desenvolvidas de democracia, inclusive para a realização da revolução socialista.” ( Luiz Carlos Prestes, Carta aos Comunistas, 1980) O século XXI aponta para uma (re)orientação da economia mundial regressando para a Eurásia, em especial o espaço Ásia-Pacífico como eixo da dinâmico da economia global. Entretanto, tal processo de transição para uma conformação multipolar nas relações interestatais possivelmente apontará ao acirramento de uma nova contradição, uma outra dinâmica da economia global, com formas estatais antiquadas e os imperativos das relações de produção de um modo de produção no qual sua expressão mais alta (o imperialismo) é justamente a negação da autodeterminação e da soberania dos povos. Tal contradição, somada a aquelas inerentes à própria lei geral de acumulação do capital (socialização da produção e concentração da riqueza, diminuição do tempo socialmente necessário com maior exploração da força de trabalho) apontam para a inauguração de poderes de novos tipos. Aqui, aposto na conjunção de inúmeras modalidades nacionais de socialismo, fundados em processos de edificações nacionais e de soerguimentos civilizacionais como já havia apontado Anuar Abdel-Malek (La dialectique sociale, 1972) na época auge do Movimento dos Não-Alinhados. Essas diversas formas nacionais de socialismo se articularão na mudança de paradigma de “choque de civilizações” pelo paradigma da “aliança de civilizações”, no qual sem a lição dos tenentes e dos nacionais libertadores, ficaremos a ver navios nos escombros da “civilização ocidental” e sua “democracia” de fome, superexploração e guerra. Cabe debater, criar e construir o caminho brasileiro ao socialismo, tal como os tenentes abriram os caminhos para o debate da “modernização brasileira”, ou melhor, da Revolução Brasileira.
*Gustavo Santos da Silva é historiador e Coordenador do Grupo de Pesquisas e Estudos Nacionais Estratégicos – Moniz Bandeira.
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