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A RELEVÂNCIA ECONÔMICA E GEOPOLÍTICA DO DONBASS (Por Moniz Bandeira)

  • grupomonizbandeira
  • 17 de fev. de 2022
  • 8 min de leitura

Na terceira publicação da série de fragmentos do último livro de Luiz Alberto Moniz Bandeira: "A desordem mundial: : o espectro da total dominação: guerras por procuração, terror, caos e catástrofes humanitárias" (2016) referentes a questão da Ucrânia se situará a importância geopolítica e econômica do Donbass, região mais oriental da Ucrânia e com fortes vínculos culturais e históricos com a Rússia.



Mapa: Donbass (Bacia de Donets) em azul.


Trecho: MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto, “A desordem mundial: O espectro da total dominação. Guerras pro procuração, terror e catástrofes humanitárias”, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, pp.237-243.


"A Ucrânia assumiu vital relevância econômica e geopolítica para o Império Russo e, por conseguinte, para a União Soviética, desde que Catarina II, a Grande, incorporou ao seu território a região de Novorossiisk (Novorossiya), na Bacia do Donets (Donbass), e o empresário galês John James Hughes a converteu em importante centro industrial, na segunda metade do século XIX, com a fundação da empresa New Russia Company Ltd. (Novorossiskoe-Rog), para explorar as vastas minas de carvão e ferro lá existentes. Durante a 7ª Conferência do Partido Comunista da Guberniya (governadoria) de Moscou, em outubro de 1921, Lenin, ao salientar que “um dos principais centros industriais” da Rússia se localizava na Bacia do Donets, onde funcionavam algumas das mais antigas empresas, não inferiores às empresas capitalistas da Europa Ocidental, afirmou que a primeira tarefa do Poder Soviético consistia em restaurar as grandes empresas industriais, e era mais fácil começar pela indústria de Donets, uma vez que lá havia relativamente pequeno número de trabalhadores.

Profundo conhecedor da doutrina de Marx e Engels, Lenin entendia claramente que o socialismo não era via de desenvolvimento econômico e sua instauração somente se tornaria possível quando as forças produtivas do capitalismo atingissem, na Rússia, um nível em que o aumento da oferta de bens e serviços, em quantidade e em qualidade, pudesse permitir que a liquidação das diferenças de classe tivesse consistência e constituísse real progresso, sem acarretar consigo o estancamento ou, inclusive, a decadência do modo de produção da sociedade. Daí por que, em 1921, retrocedeu do “comunismo militar”, instaurado durante a guerra civil, e implantou a NEP (Novaya Ekonomicheskaya Politika), o capitalismo de Estado, i.e., o capitalismo privado, sob o controle estatal. Lenin apontou, particularmente, como um sucesso da liberação do empreendimento privado e do livre comércio — compra e venda — o aumento da produção das pequenas minas arrendadas aos camponeses, que estavam a trabalhar bem e enviavam ao Estado cerca de 30% dos rendimentos do carvão extraído. O incremento da produção, sobretudo das pequenas minas, na Bacia do Donets, dentro das linhas do capitalismo de Estado, mostrava — Lenin argumentou — “a considerável melhoria geral” que ocorreu, em relação à “catastrófica” situação do ano anterior.

Lenin, como presidente do Conselho dos Comissários do Povo da União Soviética, chamou Donbass a “nossa fortaleza”, em carta a Wjatscheslaw V. Molotov (1890–1986) e a outros camaradas, datada de 21 de novembro de 1921. Poucos meses depois, em 27 de março de 1922, ao abrir o 11° Congresso do Partido Comunista da Rússia, ele declarou que, conquanto a Ucrânia fosse uma república independente, o Comitê Central tinha de interferir, devido às divergências que lá estavam a ocorrer entre alguns dirigentes. A Bacia do Donets — Lenin explicou — “era o centro, a real base da nossa inteira economia” e que sem ela seria “completamente impossível restaurar na Rússia a grande indústria para construir realmente o socialismo — o qual só pode ser construído com base em uma grande indústria” — e daí a necessidade de que a existente em Donbass fosse reparada e desenvolvida a um nível apropriado. E, mais adiante, acentuou que Donbass não era “simples distrito, mas um distrito sem o qual a construção do socialismo permaneceria como um pio desejo”.

Stalin, após o falecimento de Lenin (1923) e de consolidar-se como secretário-geral do PCUS, assenhoreando-se de todo o poder, derrogou a NEP, em 1928, e promoveu a total estatização da economia, dentro do 1° Plano Quinquenal. Contudo, de um modo ou de outro, Moscou, a fim de sustentar e acelerar o desenvolvimento econômico, visando a construir isoladamente o socialismo na União Soviética, continuou a desenvolver e modernizar a exploração das reservas minerais de carvão e ferro, a metalurgia e todos os setores da indústria em Donetsk, Luhansk e outras oblast da Ucrânia. Então, em 1938, quando Nikita Khruschiov recebeu o posto de primeiro-secretário do Partido Comunista da Ucrânia, Stalin orientou-o no sentido de que, não obstante sua paixão pelo carvão, metalurgia e indústria química de Donbass, onde nascera, prestasse atenção a outros ramos da economia, como a agricultura, a organização das fazendas coletivas e estatais, das quais a União Soviética obtinha trigo e outros grãos, batatas e diversos vegetais, leite e carne. “Decerto, deves dar atenção a todos os setores”, ponderou, a observar que a Ucrânia representava “imenso complexo industrial”, porém sua produção estava bem organizada, com bons quadros de administração, enquanto a agricultura ainda continuava “fragmentada e largamente dispersada”.

Tais recursos agrícolas e minerais, com o enorme parque industrial de Donbass, Adolf Hitler, outrossim, considerava indispensáveis para os esforços de guerra da Alemanha e daí que, em fins de 1940, o alto-comando da Wehrmacht reorientou a estratégia para o leste e a Operation Barbarossa, desfechada em 22 de junho de 1941, começou pelo Mar Báltico, ao norte, Bielorrússia, ao centro, e Mar Negro, ao sul, com três exércitos, formados por milhões de soldados, sob o comando dos marechais Wilhelm Ritter von Leeb, Feodor Von Bock e Gerd von Runstedt, e ainda 650.000 combatentes da Finlândia e Romênia, além de unidades de reforço da Itália, Hungria, Eslováquia e Croácia. O objetivo estratégico era atacar e ocupar Leningrado, Moscou e Kiev, bem como o centro industrial da Bacia do Donets, a Crimeia e os campos de petróleo do Cáucaso.

Sangrentas batalhas ocorreram em Donbass. As forças do III Reich derrotaram o Exército Vermelho e capturaram milhares de soldados, nas batalhas de Uman, Kiev, Odessa e Dnipropetrovs’k (antes denominada Novorossiysk e também Yekaterinoslav). Somente na batalha de Kiev, após cercar a cidade e arredores por mais de um mês, de 7 de agosto a 26 de setembro de 1941, a Wehrmacht fez mais de 665.000 prisioneiros. E, ao ocupar o território da Ucrânia, isolou as férteis terras de produção agrícola e as jazidas de ferro, carvão e outros minérios do resto da União Soviética e passou a explorá-las com o trabalho escravo de milhões de ucranianos. O próprio Stalin escreveu a Winston Churchill, em 4 de setembro de 1941, que já havia perdido mais do que a metade da Ucrânia, as minas de ferro de Krivoi Rog, e teve de evacuar os trabalhadores metalúrgicos, através do rio Dinieper, bem como os trabalhadores em alumínio, em Tikhvin, oblast de Leningrado. “This has weakned our power of defence and faced Soviet Union with a mortal menace”, escreveu Stalin. Tais palavras evidenciaram dramaticamente a importância que Donbass representava para a Rússia e, consequentemente, para toda a União Soviética.

Churchill narrou, em suas memórias, que as tropas da Alemanha já haviam adentrado 500 milhas (804.672 km) o território da União Soviética, e ultrapassado a área industrial da Rússia (Donbass), as ricas terras de trigo da Ucrânia, contudo ainda não haviam conseguido conquistar a Crimeia, de onde Stalin deportou a maior parte da população tatar, devido à sua ostensiva colaboração com os nazistas. O Exército Vermelho estava longe de ser derrotado, passara a combater melhor do que antes e sua força certamente cresceria. Com efeito, a Wehrmacht, após vencer a batalha de Smolenski, entre 10 de julho e 10 de setembro de 1941, a 360 km de Moscou, chegou aos seus arredores, em dezembro, mas não conseguiu invadir, nem ocupar Leningrado, não obstante cercar a cidade, por mais de dois anos, i.e., 872 dias, de 8 de setembro de 1941 a 27 de janeiro de 1943. Não tiveram condições de atingir seus três principais objetivos: a ocupação de Moscou, Leningrado e o baixo Don. A resistência do Exército Vermelho tornou-se cada vez mais feroz e o inverno, a chegar, favoreceu ainda mais a ofensiva, como Churchill anteviu. A temperatura abruptamente despencou para 20 graus negativos e algumas vezes para 60 graus abaixo de zero e as tropas nazistas não estavam devidamente preparadas para uma longa campanha em tais condições climáticas. A vitória com a Blietzkrieg, em que Hitler tanto confiava, não se consumou. As tropas da 6. Armée e da Panzer-Division, com 1,1 milhão de efetivos, comandados pelos marechais Erich von Manstein e Friedrich Paulus, não alcançaram os campos de petróleo de Baku, no Cáucaso. O Exército Vermelho, sob o comando do general Georgy Zhukov, com cerca de 1,1 milhão de efetivos, estancou o avanço das forças do III Reich, ao esmagá-las na Batalha de Stalingrado, travada entre 23 de agosto de 1942 e 2 de fevereiro de 1943.

O exato número de mortos em Stalingrado nunca se soube nem se saberá. Calcula-se que entre 750.000 e 850.000 soldados da Alemanha e seus aliados pereceram na batalha, e o Exército Vermelho ainda tomou 91.000 prisioneiros de guerra, 2.500 oficiais, 24 generais e o marechal Friedrich von Paulus. O poeta Pablo Neruda, no Chile, escreveu: “Hoy bajo tus montañas de escarmiento no sólo están los tuyos enterrados: temblando está la carne de los muertos que tocaron tu frente, Stalingrado.”

Com a perda de cerca ou mais de 800.000 efetivos e a completa destruição da 6. Armée e das 4. e 16. Panzer Divisionen — 2.000 tanques e canhões de assalto, 10.000 peças de artilharia, 3.000 aviões de combate e de transporte — enorme parte do potencial militar da Alemanha — efetivo humano e material bélico — estropiou-se e a Wehrmacht não mais teve fôlego e condições para deter o avanço do Exército Vermelho até Berlim.

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a República Soviética da Ucrânia foi um dos países fundadores da ONU. Stalin pretendeu colocá-la como membro permanente no Conselho de Segurança. A Grã-Bretanha opôs-se. Não queria que a União Soviética tivesse a seu favor mais um voto, com direito a veto, no Conselho de Segurança. As fronteiras da Ucrânia, conforme então fixadas por Stalin, compreendiam a parte da Rus’ Minor (margem esquerda do rio Dnieper), vastas áreas com população russófona, tais como as regiões leste e sudeste (Novorossiisk), Galitzia, o norte de Bucóvina, o sul da Bessarábia, Rutênia Subcarpátia (Subcarpathian Rus’). Muitos ucranianos no leste, região de Donbass, somente liam e falavam russo ou a mistura de russo e ucraniano e eram considerados os mais civilizados.

A Crimeia, desde 1918 uma república da União Soviética, juntamente com a Rússia, só passou a integrar a Ucrânia a partir de 1954. Nikita S. Khruschiov (1894–1971), como presidente do Presidium do Conselho Supremo da União Soviética, assinou, em 19 de fevereiro de 1954, um decreto, trasladando a oblast da Crimeia, circundada pelo Mar Negro e o Mar de Azov, da estrutura da República Soviética Socialista da Rússia (RSSR) para a República Soviética Socialista da Ucrânia.

No entanto, de acordo com o artigo 18 da União Soviética, as fronteiras de qualquer das repúblicas que a integravam não podiam ser redesenhadas sem o seu consentimento, no caso em questão, sem o consentimento da República Soviética Socialista da Rússia, à qual a Crimeia pertencia. O Presidium Supremo da União Soviética aprovou a transferência da Crimeia, porém não podia fazê-lo, de conformidade com a Constituição. A concessão não tinha legitimidade, e daí que, dias depois, em 27 de fevereiro, o Presidium Supremo anunciou um decreto, modificando os artigos 22 e 23 da Constituição Soviética, a fim de legalizar a transferência. A população da Crimeia, àquele tempo, era de 1,1 milhão de habitantes, dos quais aproximadamente 75% eram russos e 25% ucranianos. 25 E, em 27 de junho de 1954, o Supremo Presidium da República Soviética Socialista da Ucrânia aceitou a transferência.

Há várias versões sobre por que Khruschiov tomou tal iniciativa de ceder a Crimeia à Ucrânia. Ele nada explicou em suas memórias. Consta que o fez a título de celebrar os 300 anos de sua unificação com o Império Russo, mas os documentos existentes no Istoricheskii arkhiv, de Moscou, nada também esclareceram. O que se sabe é que o Presidium do Conselho Supremo do Partido Comunista da União Soviética aprovou, em 25 de janeiro, uma resolução preliminar, no qual autorizava o Presidium do Conselho do Soviete Supremo da República Soviética Socialista da Rússia a aprovar a cessão, o que ocorreu em 19 de fevereiro de 1954 — com a presença de apenas 13 dos 27 membros, sob a presidência do general Kliment Y. Voroshilov (1881–1969). A decisão foi tomada por unanimidade, embora não houvesse quórum, razão pela qual o Supremo Conselho da Rússia, revendo o processo, em 1992, considerou ilegítima a transferência dessa península, que então passou a chamar-se República Autônoma da Crimeia."

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