A POLÍTICA DE WASHINGTON DE EXPANSÃO NA EURÁSIA E AS ONGs SUBVERSIVAS (Por Moniz Bandeira)
- grupomonizbandeira
- 21 de fev. de 2022
- 18 min de leitura
A sétima parte da série de fragmentos do último livro de Luiz Alberto Moniz Bandeira: "A desordem mundial: : o espectro da total dominação: guerras por procuração, terror, caos e catástrofes humanitárias" (2016) referentes a questão da Ucrânia aborda o expansionismo da OTAN na Eurásia com objetivo de impedir o soerguimento russo e a ação de George Soros e das ONGs nas Revoluções Coloridas.

Imagem: Revolução Laranja, 2004 (Russian International Affairs Council).
Trecho: MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto, “A desordem mundial: O espectro da total dominação. Guerras pro procuração, terror e catástrofes humanitárias”, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, pp.265-279.
"O esforço de conciliação do presidente Leonid Kučma eclipsou, mas não resolveu as contradições domésticas e internacionais, que latejavam, na Ucrânia, um geopoliticaly pivot country, cujo noúmeno do conflito não apenas consistia propriamente na adesão da Ucrânia ao programa Partnership for Peace da OTAN, mas na onipresença dos Estados Unidos, que visavam a transformá-la em cabeça de ponte para conquistar o resto da Eurásia e obstaculizar a presença da Rússia no Mar Mediterrâneo, onde ela havia iniciado a construção de outra base militar Novorossiysk, para os silenciosos submarinos diesel-elétricos Varshavyanka (Project 636 class), capazes de navegar em águas profundas, como buracos negros, sem ser detectados pelos radares dos Estados Unidos e da OTAN. Assim, de um modo ou de outro, permaneceram latentes os fatores de combustão, que se catalisaram e outra vez inflamaram a Ucrânia.
Os Estados Unidos buscavam bloquear a reemergência da Rússia, como potência, impedir que restabelecesse a hegemonia no espaço da Eurásia e, como não pudessem derrotá-la, trataram de criar caos, a fim de evitar o seu fortalecimento, conforme o geopolítico americano George Friedman comentou a estratégia de Washington. O cerne do problema estava, pois, na desabrida ambição dos Estados Unidos de construírem, a partir da Ucrânia, a ponte para sua expansão estratégica através da Eurásia, a pivotal área do equilíbrio global, e impedir que a Rússia voltasse a reconquistar a posição dominante no Mar Negro, onde Odessa funcionava como seu principal porto de comércio com o Mediterrâneo e outras regiões no Atlântico. A Comunidade dos Estados Independentes (CEI), criada em 8 de dezembro de 1991, em Viskuli (Bielorrússia), para congregar as antigas repúblicas da União Soviética (exceto as do Báltico), nunca efetivamente funcionou e daí que a crise em toda a região se agravou, quando o presidente Vladimir Putin, em 19 de setembro de 2013, firmou, em Yalta, com os presidentes da Bielorrússia e Cazaquistão o tratado para o estabelecimento do Espaço Econômico Comum da Eurásia.
As ONGs — tais como Freedom House, American Enterprise Institute (AEI), National Democratic Institute (NDI) e muitas outras, financiadas pela USAID, NED, CIA e agências dos Estados Unidos e da União Europeia e/ou grupos privados, seguiram a encorajar as denominadas revoluções, coloridas nos países do Cáucaso. A Revolução Laranja, na Ucrânia, visou a anular a eleição de Viktor Yanukovych, governador da província de Donetsk (1997– 2002) e levar ao poder seu adversário, o líder da oposição, Viktor A. Yushchenko, que era pró-Ocidente, contrário ao acordo com a Rússia sobre a base de Sevastopol e o fornecimento de gás, através da companhia RosUkrEnergo, uma joint-venture sediada na Suíça e da qual a Gazprom possuía 50% das ações. De fato, conforme confessou à imprensa, ele expressava também a inquietação de ONGs e grupos econômicos e políticos de Kiev, que mantinham em pauta, instigados desde o exterior, os planos de integrar a Ucrânia na União Europeia, OTAN e outras instituições ocidentais. Efetivamente, a administração do presidente George W. Bush, conforme a Associated Press noticiou, havia gasto mais do que US$ 65 milhões nos últimos dois anos — 2003 e 2004 — com organizações na Ucrânia, pagando inclusive a viagem de Yushchenko para encontrar as autoridades nos Estados Unidos, a indicar que ele venceria a decisiva eleição contra Viktor Yanukovych, como aconteceu, levando-o a assumir a presidência da Ucrânia em 23 de janeiro de 2005.
Contudo, sob vários aspectos, era muito difícil divorciar a Ucrânia da Rússia. Embora o censo de 2001 registrasse que somente 17%, na Ucrânia, se consideravam etnicamente russos, várias outras pesquisas indicavam que 80% da população, em 2012, falavam russo como primeiro idioma e a cultura era predominantemente russa: mais de 60% dos diários, 83% dos periódicos, 87% dos livros, bem como 72% dos programas de televisão eram editados e transmitidos em russo.
Com toda a lucidez, como homem culto, Henry Kissinger, ex-secretário de Estado entre 1973 e 1977, escreveu que “the West must understand that, to Russia, Ukraine can never be just a foreign country”. Explicou que a Rússia fora, nos primórdios, a Kievan-Rus’; a Ucrânia havia integrado seu território durante séculos, a história dos dois países estreitamente se entrelaçava e “Ukraine has been independent for only 23 years; it had previously been under some kind of foreign rule since the 14th century”, aduziu. Daí seus principais políticos não haverem aprendido a arte do compromisso e, menos ainda, a perspectiva histórica. Henry Kissinger ponderou ser essa a razão da crise, uma vez que cada facção, representando diferentes interesses regionais e culturais, tentava impor sua vontade sobre a outra parte recalcitrante do país. A Ucrânia, chamada, tradicionalmente, de “pequena Rússia”, era, entretanto, dividida entre os etnicamente ucranianos, no Ocidente, e os russófonos, ao leste e sul, em Donbass, e este fato resultava em profundas contradições políticas.
Em tais circunstâncias, Viktor Yanukovych, do Partido das Regiões, majoritário em Donbass, venceu a eleição em 7 de fevereiro de 2010, uma eleição limpa e transparente, na qual derrotou Yulia Tymoshenko, líder da Revolução Laranja, pouco após a Rússia, Bielorrússia e Cazaquistão haverem aprovado (novembro de 2009) o plano para a criação da Comunidade Econômica Eurasiática (EurAsEC). Tornava-se previsível, portanto, que a Ucrânia a ela aderisse. Até então suas relações com a Rússia, desde 1991, eram muito instáveis. Porém Viktor Yanukovych sempre fora favorável ao entendimento entre os dois países. E em 21 de abril de 2010, pouco mais de um mês após assumir o governo, celebrou, em Kharkov (Kharkiv), um acordo com o então presidente da Rússia, Dmitry Medvedev, sobre o fornecimento de gás. Obteve um desconto de US$ 30 a US$ 100 por tonelada de metros cúbicos, sobre o preço corrente de US$ 330, em troca do prolongamento até 2042 do leasing da base naval de Sevastopol, no Mar Negro, que seu antecessor, Viktor Yushchenko (2005–2010), havia prometido e tentara acabar, sob a alegação de que sua presença violava a soberania da Ucrânia e representava um fator de desestabilização da Crimeia, cuja população era majoritariamente russa, com forte simpatia pelo modelo da União Soviética. Alguns grupos manifestaram-se contra a renovação do acordo para a preservação da base naval de Sevastopol por significar que a Revolução Laranja estava superada, morta.
O arrendamento da base naval de Sevastopol, no Mar Negro, a expirar em 2017, foi prorrogado por mais 25 anos, até 2042, com a possibilidade de ser estendido por mais cinco anos. Em compensação, a Rússia investiria no desenvolvimento econômico e social de Sevastopol, além de reduzir em 30%, abaixo da cotação do mercado, o preço do gás natural fornecido à Ucrânia, estimado em US$ 40 bilhões. O acordo de Kharkov previa a cooperação industrial e realização de projetos conjuntos, como no tempo da União Soviética, em setores estratégicos, tais como, inter alia, energia nuclear e aviação, modernização e integração de tecnologias, como antes se realizava com a União Soviética, nas áreas da aeronáutica, produção de satélites, armamento, construção naval e outras, o que permitiria ao presidente Yanukovych resgatar a Ucrânia da severa recessão e à sua economia retomar um ritmo sustentável de crescimento. O acordo ajudaria a integração dos dois países e, outrossim, evitava que a Ucrânia aderisse à OTAN, cuja carta impedia que qualquer dos seus membros instalasse bases no seu território, até o fim do arrendamento pela Rússia.
Após o entendimento entre os presidentes Yanukovych e Medvedev, o FMI, em dezembro de 2013, aprovou um bailout de US$ 15,2 bilhões, por dois anos e meio. Mas as condições impostas foram muito duras. Implicavam o corte do déficit fiscal, mediante severa redução de cerca de 50% nos subsídios de energia e dos programas sociais, das pensões, dispensa imediata de empregados do Estado, fortalecimento dos bancos e livre flutuação da moeda —hryvnia —, o que a desvalorizaria, com a queda da taxa de câmbio, e privatização das empresas estatais, i.e., entregá-las por qualquer preço às corporações estrangeiras. Eram os mesmos termos do bailout de US$ 15 bilhões, oferecido em 2010, que o presidente Yanukovych não pôde cumprir e o FMI cancelou em 2011.
A Ucrânia, ainda sob o governo do presidente Yushchenko, havia renovado as negociações em torno do European Union Association Agreement, que seria firmado na cidade de Vilnius, Lituânia, juntamente com os presidentes da Armênia, Azerbaijão, Bielorrússia, Geórgia e Moldávia, em 21 de novembro de 2013. Tratava-se de uma dúbia posição, decorrente das controvérsias domésticas e pressões estrangeiras. Porém, em outubro de 2013, o presidente Vladimir Putin impôs controles, cotas e tarifas aduaneiras para os produtos da Ucrânia destinados à Rússia, o que fez suas exportações caírem em mais de 25%; cobrou de Kiev o pagamento da dívida de US$ 1 bilhão dos suprimentos de gás, ademais de ameaçar o preço do combustível e de restringir a entrada de ucranianos para trabalhar no país. A Ucrânia, se entrasse na área de livre comércio com a União Europeia, teria então um prejuízo de cerca de US$ 500 bilhões, nos negócios com a Rússia, que necessariamente teria de derrogar o tratamento preferencial para o livre acesso ao seu mercado, um mercado de US$ 2,5 trilhões e 146 milhões de consumidores. Logo no sumário da proposta de Bruxelas para o ingresso na União Europeia estava previsto que as exportações da Ucrânia para a Rússia decresceriam 17% ou US$ 3 bilhões por ano.
Em 2013, a Ucrânia vendera à Rússia bens no valor de US$ 16 bilhões, aproximadamente 25% do total de suas exportações, e cerca de US$ 17 bilhões para a União Europeia, uma economia de US$ 17 trilhões, com mais ou menos 500 milhões de consumidores. A diferença era pequena e não compensaria as eventuais perdas, entre as quais o desconto no preço do gás. A União Europeia não solucionaria os problemas econômicos da Ucrânia. Estava bastante exaurida com a crise financeira da Grécia, Espanha e Portugal, a ameaçar também a França e a própria sobrevivência da Eurozona. Mesmo a Alemanha, responsável pela maior parte dos recursos para socorrer tais países, havia acumulado uma dívida pública da ordem de 76% do seu PIB, embora muito inferior à dos Estados Unidos, na casa de 101,53% do seu PIB. Sua indústria bélica sofrera duramente o impacto da prolongada crise financeira, que compeliu os governos todos da Eurozona a tomar severas medidas, com cortes de despesas, inclusive na área de defesa, em virtude da enorme dívida pública e da perspectiva de estagnação da economia. Por outro lado, inúmeras empresas estatais de armamentos foram privatizadas e se defrontavam com intensa competição não só no mercado exterior como também dentro da própria União Europeia.
A Ucrânia era um dos grandes exportadores mundiais de material bélico. Entre 2010 e 2014, ocupou o 9° lugar, segundo os dados do SIPRI Arms Transfers Database, e seus principais mercados estavam na China (22%), Rússia (10%) e Tailândia (9%).
No ranking de armas convencionais, a Ucrânia situava-se na quarta posição entre os exportadores de 2012. A Ukrinmash, juntamente com a Ukroboronservice e a Prohres, que se fundiram sob o nome de Ukrespetexport, vendia armamentos à Rússia e países da Eurásia, ademais de Angola, Cuba, Croácia, Paquistão, Mongólia, China, Sri Lanka, Iêmen do Sul etc. E a Ukroboronprom, a corporação estatal, responsável pela produção de material bélico, aparelhos de alta tecnologia, eletrônico-nuclear, metalúrgicos e diversos equipamentos pesados, inclusive para hidroelétricas, tinha sua sede e a maior parte das instalações e fábricas, que integravam, no leste e sudeste da Ucrânia, na Donetsk Oblast, com 4,5 milhões de habitantes, dos quais quase metade era de origem russa ou etnicamente entrelaçada por vínculos familiares. Essa corporação — Ukroboronprom — controlava 134 indústrias de defesa e, em 2013, firmou com a Aviaexport, da Rússia, um tratado de cooperação visando ao desenvolvimento conjunto de helicópteros e aeronaves, para novos mercados. Sua produção consiste em equipamentos de radar, mísseis de defesa aérea, canhões de artilharia e sistemas de produção de tanques blindados e um moderno sistema acústico de localizar a procedência de tiros e a posição de snipers e artilharia. E destina mais de 45% do total de suas exportações ao mercado da Comunidade de Estados Independentes, formada por antigas repúblicas da União Soviética, entre as quais Rússia, Belarus, Cazakistão, Kyrgyzstão, Tajikistão, que firmaram o tratado de criação da União Econômica Eurasiana.
Com aproximadamente 25.900 km² , abrangendo Kharkov, Dnipropetrovsk, Donetsk, Zaporizhzhya, Makiyivka, Mariupol e Luhansk, a Bacia de Donetsk (Donbass), possuía o maior parque de produção industrial da Ucrânia, uma das maiores concentrações industriais do mundo, ademais de que lá havia consideráveis reservas de titânio, níquel, zinco, mercúrio, petróleo, gás natural, bauxita, carvão (antracito) e minerais ferrosos. Ela se estende pela fronteira da Rússia e se identifica com a Rostov Oblast, uma área de 100.800 km² e uma população de 4,3 milhões de habitantes (2010 est.). E em Donetsk e Luhansk se concentravam as usinas de aço e as minas de carvão da Ucrânia, que mesmo após a dissolução da União Soviética, em 1991, continuou a ter na Rússia seu maior mercado, muito à frente de todos os demais e para o qual, em 2012 e 2013, destinou 25% e 27% de suas exportações, respectivamente, e do qual provieram 32% de suas importações, sobretudo de gás.
Caso aderisse à área de livre comércio da União Europeia, as indústrias de mineração de ferro e siderúrgicas, a maior parte em Donbass, perderiam a competitividade, devido à alta do preço da energia, exigido pelo FMI, e sofreriam dura concorrência tanto no mercado doméstico quanto no exterior. Muitas fábricas fechariam e/ou seriam assenhoreadas pelas corporações europeias, enquanto as grandes empresas de agro-business do Ocidente arruinariam os pequenos agricultores.
Todo esse potencial econômico cairia sob o domínio da União Europeia. A União Europeia, entretanto, muito pouco podia oferecer à Ucrânia, exceto o levantamento das barreiras alfandegárias, a exportação maciça de produtos do Ocidente e investimentos, mediante a compra das empresas nacionais. Não se dispunha então a arcar com novos compromissos, para resolver a grave situação financeira da Ucrânia. Havia oferecido a Kiev um empréstimo de € 600 milhões (equivalentes, na época, a US$ 827 milhões), valor depois aumentado para € 1 bilhão do Fundo Monetário Internacional. Era um valor extremamente irrisório, comparado com a elevada dívida do país, e insuficiente até para cobrir seu débito com a Gazprom.
A Ucrânia, por outro lado, teria de arcar com um custo de US$ 104 bilhões, a fim de implementar profundas mudanças nas suas instituições, leis e políticas, de modo a ajustar-se aos padrões e dimensões do acquis communautaire, a moldura institucional e administrativa da União Europeia, arquitetada e modelada sistematicamente por mais de 40 anos. E o presidente Yanukovych, em novembro de 2013, foi informado por um estudo do Instituto para a Economia e Prognósticos da Academia Nacional de Ciências da Ucrânia que o país teria, se entrasse na União Europeia, na realidade, US$ 160 bilhões, 50 vezes mais do que aparecia no sumário de proposta de Bruxelas e que o assessor alemão do grupo de negociações lhe dissera. Seus custos financeiros seriam, portanto, muito elevados, e a Ucrânia igualmente não tinha condições de executar outras desconfortáveis reformas de alto risco, demandadas pelo FMI e pela União Europeia, porquanto os cortes orçamentários, aumento dos impostos e a elevação das tarifas de gás em 40% escalariam as tensões sociais e engravesceriam ainda mais a recessão. A situação da Ucrânia assemelhar-se-ia à da Grécia, onde havia quatro anos, após receber o primeiro bailout do programa UE-FMI, o desemprego chegara a 27% da força de trabalho e a taxa de risco de empobrecimento continuava a recrescer.
Em 22 de setembro de 2013, dois meses antes da cúpula em Vilnius, quando seria firmado, juntamente com os presidentes da Armênia, Azerbaijão, Bielorrússia, Geórgia e Moldávia, o European Union Association Agreement, Sergei Glazyev, nascido em Zaporizhia (Ucrânia), membro da Academia de Ciências da Rússia e assessor do presidente Putin, advertiu o oligarca Petro Poroshenko, ex-ministro do Comércio e Desenviolvimento Econômico da Ucrânia (2012), de que o ingresso da Ucrânia na União Europeia ser-lhe-ia catastrófico. Arguiu que a Ucrânia somente poderia equilibrar o balanço de pagamentos mediante a união aduaneira com a Rússia, seu principal credor, e atentou-o para os custos econômicos que seu país teria, se o acordo com a União Europeia fosse assinado, pois certamente Moscou adotaria sanções e denunciaria o tratado bilateral, que delimitava as fronteiras entre os dois países. Também previu, por fim, a alta possibilidade de que ocorressem movimentos separatistas nas regiões russófonas no leste e sul do país, em Donbass.
Contudo, conforme a revista alemã Der Spiegel comentou, nem as autoridades de Bruxelas nem o governo de Berlim, sob Angela Merkel, atentaram para as realidades do poder, as preocupações da Rússia, em relação ao seu enclausuramento pela OTAN, durante todo o ano em que ocorreram as negociações para o ingresso na União Europeia. Estavam avisados, mas não consideraram o que a adesão da Ucrânia à União Europeia significaria para a Rússia. O oligarca ucraniano Victor Pinchuk, proprietário da EastOne Group LLC, advertiu os comissários da União Europeia de que o negócio com a Ucrânia podia ser considerado uma provocação com a Rússia. E assim, como nas tragédias de Sófocles —Oedipus Rex e outras —, todos sabiam o que poderia ocorrer, foram advertidos, decerto não queriam que o conflito com a Rússia ocorresse, no entanto, todos os atores fizeram tudo para que necessariamente o conflito acontecesse.
Os termos do acordo oferecido à Ucrânia pela União Europeia não compensariam as consequências, domésticas, que adviriam para a Ucrânia do impacto da majoração do preço do gás e dos impostos etc. O país estava dramaticamente empobrecido, com as reservas quase exauridas e provavelmente incapacitado de atender ao duro programa de reembolso da dívida a ter de assumir. Diante de tal perspectiva, em 21 de novembro de 2013, o presidente Yanukovych, Boryspil, no Aeroporto Internacional de Kiev, assinou a ordem legal 905-r, com a instrução para suspender as negociações com a União Europeia, decisão que sustentou, com o suporte do primeiro-ministro Mykola Azarov, não obstante as pressões de alguns oligarcas e de setores políticos de Kiev. Essa decisão implicava, decerto, clara opção geopolítica. A Ucrânia voltar-se-ia para a União Econômica Eurasiana com a Rússia, Bielorrússia e Cazaquistão, percebida pelos Estados Unidos como tentativa de ressuscitar a União Soviética, ainda que nem a Rússia nem qualquer outro Estado pretendesse fazê-lo e confrontar o Ocidente.
Porém a ratio decidendi do presidente Yanukovych foi, máxime, econômica. Em menos de um mês, 17 de dezembro, ele foi a Moscou e o presidente Vladimir Putin ofereceu-lhe um investimento em securities no valor de US$ 15 bilhões, dos quais antecipou US$ 3 bilhões com a compra de bônus da Ucrânia, e estabeleceu novo preço para o gás, em torno de US$ 268.5 per 1.000 m³ , o que significava a redução do preço em 1/3, do nível US$ 400 per 1.000 m³ , então vigente, e permitiria a economia de US$ 3,5 bilhões por ano, com a corrente taxa anual de consumo de 26–27 bilhões de metros cúbicos.
O negócio era muito mais vantajoso e barato para a Ucrânia, que outrossim evitava aumentar o preço do gás e perder o mercado da Rússia, seu principal parceiro comercial, para o qual exportava em média 24% de sua produção e importava 31% de suas necessidades de consumo. Embora fosse uma solução temporária, pois um entendimento de longo termo devia ser ainda alcançado, o acordo representava, porém, um “negócio histórico”, segundo o primeiro-ministro da Ucrânia, Mykola Azarov, o suficiente para equilibrar o pagamento por cerca de dois anos e possibilitar que o país retomasse o crescimento econômico, com a cooperação industrial da Rússia, modernização e integração de tecnologias, como antes se realizava com a União Soviética, nas áreas da aeronáutica, produção de satélites, armamento, construção naval e outras.
Contudo, as demonstrações contra o presidente Yanukovych recrudesceram. Elas haviam começado, em novembro, após a suspensão da assinatura do acordo com a União Europeia, quando o parlamentar Oleg Tsariov, do Partido das Regiões, denunciou, na Verkhovna Rada (Parlamento), que, dentro do projeto TechCamp, instrutores, a serviço da embaixada dos Estados Unidos, então chefiada pelo embaixador Geoffrey R. Pyatt, estavam a preparar especialistas em guerra de informação e descrédito das instituições do Estado, a usar o potencial revolucionário da mídia moderna para a manipulação da opinião pública e organização de protestos, com o objetivo de subverter a ordem estabelecida no país. Eram as mesmas técnicas usadas na Tunísia, no Egito, na Líbia e Síria, durante a denominada Primavera Árabe. Segundo Oleh Tsariov revelou, a última conferência da TechCamp realizou-se em 14 e 15 de novembro de 2013, no coração de Kiev, no território da embaixada dos Estados Unidos. E o treinamento ocorria pelo menos desde 2012.
Os ativistas capacitados pela TechCamp e outros, que impulsaram as demonstrações de massa contra a decisão do presidente Yanukovych, pertenciam às ONGs, organizadas pela CIA e financiadas, principalmente, pela U.S. Agency for International Development (USAID), National Endowment for Democracy (NED), bem como pela Open Society Foundations, sob o nome de Renaissance Foundation (Міжнароднийфонд — Відродження), do bilionário George Soros, Open Society Foundations (OSF), Vidrodzhenya (Reviver), Freedom House, Poland-America-Ukraine Cooperation Initiative etc.

“A Ucrânia ou a parte ocidental do país está cheia de ONGs mantidas por Washington”, denunciou o economista Paul Craig Roberts, ex-secretário assistente do Tesouro no governo de Ronald Reagan (1981–1969), acrescentando que seu objetivo era “entregar a Ucrânia às garras da União Europeia, para que os bancos da União Europeia e dos Estados Unidos possam saquear o país como saquearam, por exemplo, a Letônia; e enfraquecer, simultaneamente, a Rússia, roubando-lhe uma parte tradicional e convertendo-a em área reservada para bases militares dos Estados Unidos-OTAN”. Conforme esclareceu:
The protests in the western Ukraine are organized by the CIA, the US State Department, and by Washington — and EU — financed Non-Governmental Organizations (NGOs) that work in conjunction with the CIA and State Department. The purpose of the protests is to overturn the decision by the independent government of Ukraine not to join the EU.
Essas ONGs, desde a década de 1990, funcionaram como fachada para promover a política de regime change sem a ocorrência de um golpe militar. E a própria secretária-assistente de Estado para a Europa e Assuntos da Eurásia, Victoria Nuland, esposa de Robert D. Kagan, expoente dos neocons, a extrema direita do Partido Republicano, admitiu, durante entrevista a National Press Club em Washington, em 13 de dezembro de 2013, que os Estados Unidos haviam “investido” US$ 5 bilhões na Ucrânia:
Since the declaration of Ukrainian independence in 1991, the United States supported the Ukrainians in the development of democratic institutions and skills in promoting civil society and a good form of government — all that is necessary to achieve the objectives of Ukraine’s European. We have invested more than 5 billion dollars to help Ukraine to achieve these and other goals.

Foto: Victoria Nuland cumprimenta o Ministro da Defesa da Geórgia (Wikimedia Commons, 2013).
Somente em dois anos, 2003 e 2004, a administração do presidente George W. Bush havia gasto mais de US$ 65 milhões no apoio a organizações políticas na Ucrânia, inclusive com a viagem de grupos liderados por Viktor Yushchenko, a fim de encontrar autoridades nos Estados Unidos, indicando assim que ele venceria o turno final da eleição para a Presidência da Ucrânia. Também o International Republican Institute (IRI), sob a direção do senador John McCain, patrocinou a campanha de Yushchenko e possibilitou que ele tivesse em Washington encontros com o vice-presidente Dick Cheney, o secretário-assistente de Estado, Richard Armitage, e senadores do Partido Republicano.
Diversas ONGs eram financiadas pelo bilionário George Soros, que havia duas décadas estava a derramar, ostensivamente, dezenas de milhões de dólares na Ucrânia, como em outros países do Leste Europeu, através da International Renaissance Foundation (IRF), de sua propriedade, e de vários institutos e fundações, rotulados Open Society, sob o pretexto de ajudá-los a se tornarem “open” e “democratic society”. O Annual Report for 2012 da International Renaissance Foundation consignou o gasto de UAH (hryvnia) em 63 milhões, o equivalente, na época, a US$ 6,7 milhões no engajamento de ONGs, catalisando-as em iniciativas contra a corrupção e em favor de reformas democráticas, o que significava cooptação de políticos e sustentação da mídia (jornais, TV e internet), em oposição ao governo do presidente Yanukovych e intensificadas depois de sua eleição em 2010. De 1991 a 2011, em 20 anos as Open Society Foundations, de George Soros, espargiram por meio da International Renaissance Foundation (IRF) cerca de US$ 976 milhões nos países do Leste Europeu, antes aliados do Pacto de Varsóvia, e nas repúblicas que se desprenderam da União Soviética. 55 A Ucrânia foi o país onde, de 1990 a 2010, as ONGs e outras entidades, como editoras, grupos acadêmicos e culturais, mais receberam doações, em um montante superior a US$ 100 milhões.
George Soros, entrevistado pelo jornalista Fareed Zakaria, da CNN, no programa On GPS: Will Ukraine detach from Russia?, após admitir que, em 1989, financiara os dissidentes nos países da Europa Oriental, como Polônia e República Tcheca, revelou que antes de que a Ucrânia se separasse da União Soviética lá havia assentado uma fundação, que não só estava em pleno funcionamento como também havia desempenhdo importante papel nas manifestações que irromperam na Maidan Nezalezhnosti (Praça da Independência), desde novembro de 2013, e impulsaram a derrubada do presidente Yanukovych.
Orysia Lutsevych, que trabalhou para a Freedom House e foi diretora-executiva da Open Ukraine Foundation, escreveu que em vários países, como a Ucrânia, as ONGs tornaram-se sinônimo de sociedade civil e de fato monopolizaram seu discurso, a suplantar as instituições e derruir a democracia. As ONGs — conforme salientou — converteram-se em uma “‘NGO-cracy’ [ONG-cracia], where professional leaders use access to domestic policymakers and Western donors to influence public policies, yet they are disconnected from the public at large”. E em três países da Eurásia — Ucrânia, Geórgia e Moldávia — a ONGcracia minou o que realmente se podia considerar democracia.
Em novembro de 2014, o ministro de Defesa da Rússia, Anatoly Antonov, e o ministro de Defesa da China, Chang Wanquan, conversaram, em Beijing, sobre as novas formas de agressão estrangeira, a propósito das intensivas manifestações “pró-democracia”, que estavam a ocorrer em Hong Kong e nas quais até símbolos da Union Jack apareciam, e decidiram juntar as forças para combater a ameaça das chamadas “revoluções coloridas”, como ocorrera na Ucrânia e às quais nenhum país estava imune. Segundo o diretor do Departamento de Estudos Estratégicos da China, Chen Xulong, a campanha rotulada de “Occupy Central”, em Hong Kong, fracassou porque o governo central de Beijing e as autoridades da Especial Região Administrativa de Hong Kong rapidamente identificaram a semelhança e perceberam que se tratava de uma versão das “color revolutions”, realizadas em outras partes do mundo, com protestos de rua, bloqueio de edifícios públicos e demanda de renúncia das autoridades.

Foto: Manifestantes antigovernamentais seguram faixas, cartazes e bandeiras da Union Jack enquanto se reúnem no consulado-geral britânico em Hong Kong, China, em 15 de setembro de 2019. (REUTERS/Athit Perawongmetha)
Sergei Lavrov, ministro dos Assuntos Estrangeiros da Rússia, declarou que o conflito na Ucrânia fora deflagrado a partir de pressão do exterior, a fim de compelir Kiev a tomar decisão em favor do Ocidente. Referiu-se à ebulição no Oriente Médio e na África do Norte, onde a ameaça do terrorismo recrescia, inclusive por meio da aguda amplificação e transformação dos grupos do Exército Islâmico (ISIS/ISIL) em um real exército terrorista. E apontou que “um fator muito sério de desestabilização” era ainda usado em várias regiões do mundo com as tentativas de “exportar democracia e mudar regimes políticos com o fito de promover color revolutions. O derrocamento do presidente Yanukovych, na madrugada de 21 para 22 de fevereiro de 2014, configurou, na realidade, a reprodução da denominada Revolução Laranja, que demoliu o governo do presidente Leonid Kučma, entre novembro de 2004 e janeiro de 2005, patrocinada pelo Ocidente, i.e., Estados Unidos e União Europeia.
As circunstâncias, contudo, não mais eram iguais às de uma década atrás. E, em 26 dezembro de 2014, após a Verkhovna Rada aprovar a renúncia da Ucrânia ao status de neutralidade, o presidente Putin aprovou a revisão da doutrina militar da Rússia, de 2010, e não somente identificou a expansão da OTAN até suas fronteiras como a fundamental ameaça à segurança nacional, como também agregou o uso de movimentos financiados e conduzidos desde o exterior, assim como a utilização de meios não militares juntamente com a força militar, inclusive a vontade de protestos, como elementos que configuravam na época aspectos característicos de conflito. Não obstante admitir o uso de armas nucleares, se necessário, a doutrina militar da Rússia permaneceu de natureza defensiva, primordialmente, deixando a ação militar só para o caso em que todas as opções violentas estivessem esgotadas."
Comments