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A INTERDEPENDÊNCIA ESTRATÉGICA ENTRE UCRÂNIA E RÚSSIA (Por Moniz Bandeira)

  • grupomonizbandeira
  • 20 de fev. de 2022
  • 7 min de leitura

Atualizado: 24 de fev. de 2022

A sexta parte da série de fragmentos do último livro de Luiz Alberto Moniz Bandeira: "A desordem mundial: : o espectro da total dominação: guerras por procuração, terror, caos e catástrofes humanitárias" (2016) referentes a questão da Ucrânia aborda a teoria de Zbigniew Brzezinski da Ucrânia como pivot geopolítico, a dependência do gás da Rússia, a importância geoestratégica da base naval de Sevastopol, entre outros assuntos.


Imagem: Strategic Council on Foreign Relations (República Islâmica do Irã)


Trecho: MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto, “A desordem mundial: O espectro da total dominação. Guerras pro procuração, terror e catástrofes humanitárias”, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, pp.255-261.


"A Ucrânia, situada entre a Rússia e a União Europeia, com tendências centrífugas, era e é um pivot country geopolítico. Zbigniew Brzezinski, ex-assessor de Segurança Nacional do presidente Jimmy Carter, escreveu certa vez que, no tabuleiro do xadrez mundial, a Rússia, sem a Ucrânia, deixaria de ser um império eurasiano. Ainda poderia lutar pelo status imperial, mas apenas seria predominante na Ásia, em conflito com outros Estados, que se tornaram independentes da União Soviética. A Ucrânia podia estar na Europa sem a Rússia — assim ele entendia —, porém a Rússia não podia estar na Europa (Ocidental) sem a Ucrânia, cuja separação empurrava suas fronteiras 500 milhas (804.672 km) para o leste e lhe arrebatava potente zona industrial e férteis áreas de agricultura, bem como 52 milhões de habitantes (1997), russófonos, etnicamente vinculados à população russa. Daí por que —Zbigniew Brzezinski argumentou — os Estados Unidos deviam impedir a Rússia de reconquistar o controle da Ucrânia, um país com larga fonte de recursos e acesso ao Mar Negro, através da base naval de Sevastopol, o que lhe permitiria restaurar seu status imperial.

Devido à sua dimensão geográfica, demográfica e estratégica — e ainda possuir grande arsenal nuclear —, o presidente Bill Clinton, ao assumir o governo dos Estados Unidos, em 1993, deu prioridade à Ucrânia, nos marcos do projeto de estender a jurisdição da OTAN às antigas repúblicas da União Soviética, temendo que ela, isolada, no sudeste da Rússia, girasse outra vez para sua órbita de gravitação. E, ao visitar Kiev, em janeiro de 1994, propôs ao presidente Leonid Kravchuk (1991–1994) a integração da Ucrânia (como das demais repúblicas do Pacto de Varsóvia) na arquitetura da OTAN, por meio da adesão ao programa de Paternship for Piece (PfP), elaborado pelo então secretário de Estado, Warren Christopher, e pelo secretário de Defesa Les Aspin.

A Ucrânia sempre fora um país muito contraditório. Nem todas as regiões, com variáveis diferenças étnicas, econômicas, sociais, políticas e culturais, aceitavam a adesão à OTAN e o ingresso na União Europeia. A oferta de vincular a Ucrânia às Forças Armadas dos Estados Unidos, através da OTAN, com a qual setores nacionalistas de Kiev e da Galitzia muito simpatizavam e favoreciam, implicava, no entanto, quantidade suficiente de combustível para produzir chamas nas relações com a Rússia com respeito ao controle da base de Sevastopol e, consequentemente, de toda a península da Crimeia. E tal controle igualmente se enredava com a questão do fornecimento de gás natural, de cujos suprimentos a Ucrânia dependia da Gazprom, em pelo menos 40%. Ademais, aproximadamente, 3,0 trilhões de pés cúbicos de gás natural (Tcf), i.e., 86 bilhões de metros cúbicos (bcm), procedentes da Rússia, transitaram por seu território, em 2013, a fim de abastecer a Áustria, Bósnia-Herzegovina, Bulgária, Croácia, República Tcheca, Alemanha, Grécia, Hungria, Moldávia, Polônia, Romênia, Eslováquia e Turquia.

A Rússia exportou para a Europa Ocidental, em 2011, cerca de 35% dos suprimentos de óleo cru, através do ramal sul do oleoduto Druzhba, que passava pela Ucrânia. Outrossim, em 2012, exportou aproximadamente 7,4 milhões bbl/d do total de combustíveis líquidos, com 5 milhões de bbl/d de óleo cru e 2,4 milhões bbl/d de produtos de petróleo. Os países da Europa, sobretudo a Alemanha, Polônia e Holanda, bem como da Europa Oriental importaram da Rússia, em 2013, 79% do óleo cru, cerca de 300.000 bbl/d a 400.000 bbl/d — a maior parte do combustível consumido pela Hungria, Eslováquia, República Tcheca e Bósnia.

As controvérsias sobre a base naval de Sevastopol haviam começado em 1992, em meio às negociações sobre a retirada do arsenal atômico da União Soviética, instalado na Ucrânia, cuja remoção finalmente aconteceu, após acordo trilateral, alcançado em janeiro de 1994, com a visita do presidente Bill Clinton a Kiev, após árduas negociações das quais participaram, além da Rússia, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha. A Ucrânia receberia então segurança, compensação econômica no valor do urânio altamente enriquecido de 1.500 ogivas (highly-enriched uranium — HEU), assistência no desmantelamento dos 176 mísseis intercontinentais (ICBMs), silos, bombardeiros e infraestrutura atômica existente em seu território. A remoção dos artefatos atômicos da Ucrânia era uma questão na qual os Estados Unidos e a Grã-Bretanha podiam envolver-se e pressioná-la, uma vez que se inseria no esforço de desnuclearização efetuado pelas grandes potências, nos marcos do Strategic Arms Reduction Treaty I (START) e do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP). Porém a controvérsia sobre a base naval de Sevastopol afigurava uma questão bilateral, conquanto, na realidade, a pretensão dos Estados Unidos (e de setores políticos de Kiev) de estender à Ucrânia a estrutura militar da OTAN configurasse poderoso obstáculo.

Sevastopol, onde a 5ª esquadra da extinta União Soviética estacionava, sempre foi considerada cidade russa e os setores nacionalistas, em Moscou, pressionavam no sentido de que a Rússia a recuperasse para a sua jurisdição, assim como todo o território da Crimeia, predominantemente russo e favorito dos turistas russos para férias. O prefeito de Moscou, Yuri Luzhkov (1992–2010), sugeriu publicamente que Nikita Khrushiov estava embriagado quando tomou a decisão de doar a península à Ucrânia. Mais de 80% dos habitantes da Crimeia falavam russo, sempre se consideraram russos, advogavam a secessão da Ucrânia e a reintegração da península à Rússia. Muitos dos que residiam em Sevastopol eram ex- marinheiros soviéticos, com âncoras tatuadas nas mãos e braços, eram pró-Rússia e ferozmente contrários à OTAN, considerada por eles inimigo. No entanto, Kiev queria assenhorear-se de 50% da Frota Soviética do Mar Negro, estacionada em Sevastopol, dandolhe o status de principal base naval da Ucrânia, o que nem a Rússia nem o povo da Crimeia aceitavam. Ademais, um terço do vasto arsenal nuclear da União Soviética estava instalado na Ucrânia.

A Crimeia, em 1992, proclamou-se independente, separando-se da Ucrânia como república, estabelecendo sua própria Constituição, que a Rada de Kiev revogou em 1995. Em maio do mesmo ano, 1992, o Supremo Soviet da Rússia anulou a decisão que havia transferido a península para a jurisdição da Ucrânia. O Congresso dos Deputados do Povo Russo, em dezembro de 1992, decidiu investigar a legalidade da reclamação de Sevastopol pela Ucrânia. E a Duma, em Moscou, aprovou, em 9 de junho de 1993, uma resolução a reafirmar o status de Sevastopol como cidade federal da Rússia e a indivisibilidade da Frota do Mar Negro. Mais de 90% dos habitantes de Sevastopol, em pesquisa realizada em maio de 1994, também se manifestaram a favor de que a base naval de Sevastopol permanecesse com a Rússia. Também foram organizadas manifestações públicas no mesmo sentido. Naquele mesmo ano (1994), Leonid Kučma (1994–2005), ao assumir a Presidência da Ucrânia, tomou uma atitude mais conciliatória com respeito à Crimeia e à Rússia e, quando o presidente Bill Clinton lhe sugeriu associar a Ucrânia à OTAN, durante o encontro que tiveram em Kiev, em 22 de novembro de 1994, ele desconversou. A Ucrânia, cujo PIB havia caído cerca de 25%, durante o governo de Leonid Kravchuk, na primeira metade dos anos 1990, não tinha condições de confrontar-se nem com a Rússia nem com os Estados Unidos.

O fornecimento de gás pela Rússia para atender a cerca de 70% das necessidades de consumo da Ucrânia, a base naval em Sevastopol, a Frota do Mar Negro, composta por cerca de 800 navios de guerra, e o alinhamento com a OTAN eram questões que se intrincavam, se contrapunham e se excluíam. O vice-almirante Eduard Baltin, ao assumir o comando da Frota do Mar Negro, em 1993, comentou que a Ucrânia se tornara um país autônomo, com sua própria visão de política interna e externa, diferente da Rússia, e seria difícil para o povo ver os navios russos navegando para leste e os navios ucranianos para o Ocidente, subordinados à OTAN.

O presidente Leonid Kučma (1994–2005), por fim, realizou que as relações econômicas com a Rússia constituíam para a Ucrânia uma questão de sobrevivência, não apenas de prosperidade, e que Kiev não tinha condições de negociar com Moscou em posição de força. Àquele tempo, a Rússia exportava, através dos gasodutos Bratstvo (Urengoy-PomaryUzhgorod) e Soyuz, cerca de 156,1 bilhões de metros cúbicos de gás para a Europa Ocidental, no valor de US$ 35 bilhões, e 37,6 bilhões de metros cúbicos, o equivalente a US$ 3,4 bilhões, para a Ucrânia, cujo déficit com a Gazprom já atingia o montante de US$ 1,52 bilhão e não estava em condições de cobri-lo, o que levou a Rússia a paralisar seu fornecimento.

Havia interdependência estratégica entre os dois países e a Ucrânia necessitava aceitar a assimetria e manter relações normais com a Rússia. As divergências sobre a demarcação e o reconhecimento das fronteiras foram equacionadas com a celebração do Tratado RussoUcraniano de Amizade, em busca de segurança e estabilidade na Europa Oriental, firmado em 28 de maio de 1997 pelos primeiro-ministros da Ucrânia, Pavlo Lazarenko, e da Rússia, Viktor S. Chernomyrdin. A Rússia ficaria com a maior parte da Frota do Mar Negro, junto com a propriedade do nome, cabendo à Ucrânia apenas 18,3% e compensações financeiras, assim como a propriedade de Sevastopol, com a obrigação de arrendá-la à Rússia por US$ 97,7 milhões, 39 durante o período de 20 anos, prorrogável pelo valor de US$ 100 milhões, com possibilidade de revisão para aumento.

O arrendamento da base naval, por 20 anos, com possibilidade de prorrogação, estava implicitamente vinculado ao fornecimento de gás subsidiado à Ucrânia. Em tais circunstâncias, o presidente Leonid Kučma, ao mesmo tempo que assinou o Tratado de Amizade com a Rússia, sobre a questão da base naval de Sevastopol e a Frota do Mar Negro, assentou, no mesmo ano (1997), o relacionamento com a OTAN, nos termos da Charter on a Distinctive Partnership, reforçada por outro instrumento em 2009, criando a NATOUkraine Commission (NUC), para o diálogo político e um programa anual de cooperação prática. Diversos fatores e pressões — tanto domésticas quanto externas — compeliram o presidente Leonid Kučma à tentativa de estabelecer o entendimento duplo e difícil da Ucrânia com a Rússia e, simultaneamente, a OTAN. Os Estados Unidos não desistiram de cercar, confinar e, ocupando econômica e militarmente a Ucrânia, apartar a Rússia da Europa Ocidental."

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