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A DESINTEGRAÇÃO DA URSS E O DECLÍNIO ECONÔMICO DA UCRÂNIA (Por Moniz Bandeira)

  • grupomonizbandeira
  • 17 de fev. de 2022
  • 7 min de leitura

No presente texto Moniz Bandeira aborda o colapso econômico da Ucrânia após o desaparecimento da URSS, a apropriação de bens públicos pelos oligarcas e a emergência de Yulia Timoshenko através da lavagem de dinheiro e evasão de impostos.

O texto se trata da quarta parte da série de fragmentos do último livro de Luiz Alberto Moniz Bandeira: "A desordem mundial: : o espectro da total dominação: guerras por procuração, terror, caos e catástrofes humanitárias" (2016) referentes a questão da Ucrânia.

Foto: Ataque de artilharia do exército ucraniano no distrito de Artyom em Slavyansk. (Foto AFP / Andrey Stenin), 2014.


Trecho: MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto, “A desordem mundial: O espectro da total dominação. Guerras pro procuração, terror e catástrofes humanitárias”, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, pp.243-248.


"Após a Segunda Guerra Mundial, o desenvolvimento do parque industrial da Ucrânia, situado principalmente em Donbass, tomou impulso, sobretudo na primeira metade de 1960, mas, a partir de 1965, começou a desacelerar-se e, nos anos 1970, virtualmente estagnou. E a fragilidade nacional da Ucrânia, ao separar-se da União Soviética e tornar-se república independente, em 1991, era tanto populacional quanto econômica. Dos 44,6 milhões de habitantes, 77% eram ucranianos, 17% etnicamente russos e 6% de várias outras nacionalidades: bielorrussos, tatars, poloneses, lituanos, judeus e romenos. E, economicamente, unidade não havia. A agricultura continuava, relativamente, a prevalecer no oeste, mais pobre e onde apenas eram produzidos aparelhos de televisão e ônibus, enquanto a região da Novorossiisk (leste e sudeste) possuía, ademais de ricas reservas de carvão, vasto parque industrial — usinas de aço, metalurgia e fábricas de máquinas pesadas — vinculado umbilicalmente à economia russa, à sua cadeia de produção de foguetes e outros artefatos militares, além de medicamentos, desde o tempo da União Soviética. E daí saía grande parte das exportações que sustentavam a Ucrânia, um país multiétnico e multilinguístico, cujas relações com a Rússia foram aprofundadas, historicamente, pelas relações econômicas, integração da cadeia industrial e o mercado russo, assim como pelas relações culturais e entroncamentos familiares, devido aos matrimônios interétnicos.

A Ucrânia, entretanto, era uma das mais pobres repúblicas da extinta União Soviética. E sua produção, como das demais repúblicas que se desmembraram, sofreu elevado declínio, ao mesmo tempo que a hiperinflação recrescia, devido a vários fatores, inter alia, não possuir instituições financeiras domésticas, maior acesso ao mercado estrangeiro e ter de cobrir o aumento do déficit orçamentário, com emissões e empréstimos do Banco Central. Sua economia, entre 1991 e 1996, ainda mais se contraiu, entre 9,7% e 22,7%, anualmente, em meio a hiperinflação e amplo declínio da produção industrial, concentrada principalmente na produção de material bélico, na região de Donbass.

Segundo os dados disponíveis, embora as estatísticas então fossem incertas, o PIB per capita da Ucrânia, estimado em US$ 1.748, em 1990, caiu para US$ 1.337, em 1993, e daí por diante declinou ainda mais até o ano 2000. E seus habitantes alimentavam a expectativa de que maior integração com os países euro-atlânticos, o estabelecimento da democracia e do free-market melhorassem seu nível de vida. No entanto, apesar de tais expectativas, a promoção da democracia e do livre mercado não propiciou à Ucrânia nem estabilidade nem riqueza. O impetuoso processo de privatização, desregulamentação e liberalização do comércio, conforme as diretrizes do Washington Consensus, arruinou-lhe ainda mais a economia e favoreceu a corrupção, além da emergência de uma nova classe dominante, um círculo de bilionários, dos oligarcas, que constituíram pequena elite política.

Até então a Ucrânia dependera e continuou a depender da Rússia, que virtualmente lhe sustentara a economia, ao fornecer-lhe a preço subsidiado 70% do gás e petróleo que ela importava. Por outro lado, 30% do complexo industrial de defesa da União Soviética estava situado no território da Ucrânia, cujas fábricas, em torno de 750, e 140 instituições técnicas, com 1 milhão de trabalhadores, permaneceram, portanto, integradas à cadeia produtiva da Rússia, seu mais significativo mercado e onde a maior parte dos componentes para os armamentos era manufaturada, 37 tais como engrenagens para os navios de guerra, sistema de satélite para alerta de ataques, bem como os desenhos para os mais pesados mísseis balísticos internacionais, os SS-18 Satan e outras armas nucleares. Porém, desde que a Ucrânia se desgarrou da União Soviética, a Rússia retirou dois terços da indústria de defesa lá instalada e suas importações de maquinaria e armamentos caíram para 40%, cerca de US$ 15,8 bilhões, o equivalente a 5% do total de suas importações em 2013, o que representou mais ou menos 53% do que a Ucrânia exportava para a Rússia em volumes de ferro e aço (14%); maquinaria e equipamentos mecânicos, reatores nucleares (14%); estradas de ferro e locomotivas, vagões (12%); equipamentos e maquinaria elétrica (7%); ferro ou produtos de aço (6%).

A partir de 1991–1992, a indústria de defesa da Ucrânia foi, destarte, reduzida a aproximadamente 300 empresas e instituições — das quais estavam registradas e licenciadas para produzir petrechos militares, inclusive foguetes e mísseis — empregando 250.000 trabalhadores. Em 2010, o governo criou uma holding, a Ukroboronprom, que passou a controlar 134 indústrias estatais de defesa, com 120.000 trabalhadores. Em 2012, suas vendas alcançaram US$ 1,44 bilhão, e US$ 1,79 bilhão, em 2013. Na lista do Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI), de 2011 e 2012, a Ukroboronprom ficou entre os 100 maiores fabricantes de armamentos do mundo. Esse conglomerado, situado em Donetsk, que incluía, em 2014, a UkrSpetsExport, sempre esteve integrado com o complexo industrial da Rússia e fornecia-lhe componentes de rádio eletrônico, aparelhos de visão e aparelhos rádio-eletrônicos e de orientação para robôs e aviões, particularmente os engenhos de aviação TV3-117/VK-2500, dos quais eram equipados os helicópteros de combate e transporte, sistemas digitais de comunicação e navegação. A Motor Sich, localizada em Zaporozhia, a 230 km a oeste de Donetsk, produzia a maior parte dos helicópteros militares, inclusive o Mi-24 usado pelas Forças Armadas da Rússia. Também estavam situadas em Donbass as fábricas que produziam os mísseis R-27 de médio alcance ar-ar e outros componentes sensíveis. E a Ucrânia carecia de suficiente mercado interno (grandes forças armadas) para consumir a substancial produção de sua indústria de armamentos e, sem a colaboração tecnológica da Rússia, que absorvia a maior parte, perdeu a competitividade no mercado internacional. Ainda assim sobreviveu graças à permanência das demandas de Moscou, dado que sua estreita implicação com a da Rússia não podia rapidamente se desvanecer.

Também a agricultura, que antes representava um quarto da produção agrícola da União Soviética, entrou em prolongada crise com o fim da planificação da economia; em 1990, a fim de privatizar, livre de impostos, as férteis terras negras, ricamente humificadas, o governo fechou cerca de 12.000 kolkhozy (fazendas coletivas) e sovkhozy (fazendas estatais), que empregavam mais de 40% da população rural da Ucrânia. Ocorreu então o surgimento de nova e pequena classe de empresários, a emergência de grandes companhias agrícolas privadas, ao mesmo tempo que a maioria da população rural empobrecia e a desigualdade social se exacerbava. Essa reforma foi extremamente difícil, uma vez que os empresários emergentes na Ucrânia careciam de experiência de mercado e de capital. A queda dos preços da produção agrícola, depois de 1991, agravou a crise do setor, o nível de vida no campo descaiu, a estrutura social rapidamente se degradou e a população rural decresceu 15,9% (2,7 milhões de pessoas), entre 1991 e 2013, a provocar grave desequilíbrio demográfico.

A Ucrânia, separada da Rússia, não melhorou nem econômica nem politicamente sua situação. Não diversificou as exportações e somente em um ano, 2002, manteve o equilíbrio orçamentário. O PIB entrou em colapso entre 1990 e 1994 e continuou a declinar durante a década, em meio à expansão da shadow economy, chegando a representar 68% do seu valor oficial em 1997, 45 e ao processo de privatização das empresas estatais, que então começou a efetivar-se com a aprovação pelo Parlamento da resolução “Sobre a perfeição do mecanismo de privatização na Ucrânia e intensificação do controle de sua condução” e tomou impulso sob a presidência de Leonid Kučma (1994–2005), sucessor de Leonid Kravchuk (1992–1993), ambos intimamente ligados ao arquibilionário especulador financeiro George Soros. E a implementação desse processo recebeu forte suporte do Banco Mundial, USAID e da EC TACIS (European Commission — Technical Assistance to the Commonwealth of Independent States), cujos consultores monitoraram a transição para a economia de mercado das repúblicas apartadas da União Soviética. Em 2 de setembro de 1996, o governo do presidente Leonid Kučma substituiu então a antiga moeda —karbovanets — pela nova moeda soberana — hrywnja (Гривня — grívnia) — que foi pouco usada, em virtude da prevalência de rublos e dólares, mas a economia da Ucrânia, devido em larga medida à fuga de capitais em 1988, contraiu-se cerca de 15%, em 1999, com a produção a descambar para menos de 40% do nível de 1991. Tornara-se em larga medida improdutiva.

Não obstante, em meio à severa crise econômica, gerentes de empresas estatais tornaram se ricos e poderosos capitães de indústria — oligarcas — durante o processo de privatização, com a apropriação a baixos custos de empresas do Estado, e passaram a financiar os partidos, como líderes políticos, a disputarem o controle do Estado para fazê-lo sua própria empresa, pautando em todos os níveis as decisões do governo. A instabilidade política, fertilizada pela corrupção endêmica, marcou desde então a história da Ucrânia e, nutrida com esse húmus, foi como Yulia (née Telehina) Tymoshenko, proprietária de uma loja de aluguel de vídeo, acervou bilhões de dólares. Após o colapso da União Soviética, ela se tornou diretora de uma pequena empresa — Ukrainian Oil Company (UOC) — e a desenvolveu como trading —United Energy Systems of Ukraine — a importar gás natural da Rússia. Conforme, porém, se revelou, Yulia Tymoshenko enriqueceu como “poacher-turned-gamekeeper”, com lucrativas operações de lavagem de dinheiro, evadindo o pagamento de impostos e desviando enormes quantidades de gás, com pagamento de propinas ao primeiro-ministro Pavlo Lazarenko (1996–1997) pelo acesso a informações reservadas e especiais concessões, que lhe permitiram consolidar um terço do setor de gás e um quinto do PIB da Ucrânia.


Foto: Yulia Timoshenko quando primeira-ministra da Ucrânia, em 2009 Alexander Prokopenko / Reuters/VEJA.


Nascida em Dnipropetrovsk, na Bacia do Dnieper, região russófona, Yulia Tymoshenko, em 2001, foi presa (também seu marido Olexandr Tymoshenko), por transferir ilegalmente US$ 1 bilhão da Ucrânia e pagar milhões de dólares de molhadura a Pavlo Lazarenko. Permaneceu 42 dias detida. A acusação, porém, foi retirada e ela, solta. De qualquer forma, embora não constasse da lista dos bilionários da Ucrânia, ela empalmou, mediante shadowy gas-trading business, uma fortuna pessoal avaliada em US$ 11 bilhões, e evaginou-se politicamente durante a Revolução Laranja, em 2004/2005. Tornou-se então primeira ministra no governo de Viktor A. Yushchenko, governador do Banco da Ucrânia, que assumiu a Presidência do país após uma eleição permeada pela fraude, impulsou a privatização das empresas estatais e defendeu a adesão à OTAN. Os Estados Unidos deram lhe massivo suporte econômico e político."

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